domingo, 1 de abril de 2012

ESCUTAR A VIDA


Caríssimas e caríssimos,

Olga Dias relata-nos uma experiência... desumanizadora. Uma experiência de quem vive do lado dos mais frágeis, no quotidiano dos sem voz.
A situação gritante de que a Olga foi testemunha – mesmo que fosse necessário, o senhor deficiente que fora chamado para uma cirurgia poderia ser o último a ser intervencionado, já que uma situação “inesperada” se lhe sobrepôs... (ver texto abaixo) – faz eco do momento inquietante que os doentes oncológicos estão a viver, devido à recusa dos serviços passarem requisições de transportes... O que está a acontecer é que muitos daqueles doentes já estão a faltar aos tratamentos de radioterapia e de quimioterapia, por os médicos se recusarem a assinarem autorizações de transporte em ambulância O presidente do Colégio de Oncologia da Ordem dos Médicos, Jorge Espírito Santo, sublinha que a legislação nesta matéria não foi alterada, mas o que está a acontecer é que os médicos estão a ser pressionados, pelos responsáveis dos Serviços, para que evitem despesas, incluindo aquela...  
A lógica das instituições públicas parece estar a resvalar para o desprezo da ética profissional e das referências humanizadoras do seu funcionamento. Como mobilizar os nossos corações para que, no quotidiano, possamos agir?
Fraternalmente,

grão de mostarda

Como se perdoa uma injustiça?

Esta semana passei por uma experiência não muito agradável e triste, sintomática de quanto os seres humanos ainda têm muito que crescer e ampliar a sua visão e o seu coração na forma como lida com o seu semelhante.

Tenho acompanhado já há cerca de dois anos, a consultas num Hospital na área de Lisboa, um senhor de quase setenta anos, deficiente, jogado na vida um pouco à sua sorte, ou seja, com quase ou nenhum acompanhamento familiar.

Depois de muitas horas de espera e de vários meses de intervalo entre as ditas consultas, o médico decidiu operá-lo, o que para mim foi uma benção nos tempos que correm, na expectativa de lhe conferir mais qualidade de vida. Assim, depois de uma espera de seis meses aproximadamente, telefonaram-lhe para casa para ele se apresentar nesta última quarta-feira para ser internado. Com muito receio e ansiedade e ainda com as dificuldades inerentes ao transporte deste idoso, lá chegámos ao Hospital à hora marcada. 

Depois de lhe atribuírem a cama onde ia ficar, despi-lo, deitá-lo e de uma hora à espera que alguém daquele Serviço viesse falar connosco, apareceu uma funcionária a dizer que o senhor teria de ir para casa porque a operação tinha sida adiada e que fosse falar com o médico. Lá fui, ao qual mostrei a minha indignação e disse-lhe como era possível que fizessem este tipo de procedimentos com uma pessoa naquelas condições. Ele disse que o hospital não podia fazer nada porque tinha surgido uma urgência e não havia possibilidade de operá-lo naquele dia. Enfim, fiz vários exercícios de respiração e de perdão interior para que o idoso não ficasse mais nervoso do que estava.
Infelizmente, apercebi-me imediatamente do que se passava, o que ainda me causou mais revolta. Enquanto aguardávamos na sala de espera pelo internamento, com outros pacientes, encontrava-se na sala uma conhecida jornalista da nossa praça, que acompanhava um senhor, possivelmente seu familiar. Estava visivelmente preocupada, pois falava com os enfermeiros, falava com médicos, saía e entrava na sala constantemente, até que mais tarde o seu familiar recebeu a ordem de internamento.

Não posso provar nada, mas tenho quase a certeza que para que o familiar daquela jornalista pudesse ser internado, o idoso, na sua fragilidade e anonimato, foi mandado indignamente para casa... O seu caso podia esperar... E provavelmente até podia. 

Eu não estou do outro lado e o caso da outra pessoa era talvez muitíssimo urgente, mas de qualquer modo não é assim que se tratam as pessoas, ainda mais uma pessoa deficiente, com tantas limitações e sofrimentos.
Após esta revolta, suavizei-me, apaziguei-me e fiquei apenas feliz por haver a possibilidade de que este meu querido amigo seja tratado doravante com mais dignidade e respeitado na sua condição de ser humano.

Considerei esta situação de uma injustiça sem justificação e por isso a partilho convosco. Provavelmente não soube lidar com a situação de outro modo, mas deixo-vos aqui o meu sentir...

Olga Carla Dias

Olga Dias integra o Projecto CONFIANÇA, movimento que acredita que a “fonte de vida” é a solidariedade humana. 

Foto: © Paulo Pimenta (Públio) 


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