domingo, 30 de junho de 2013

DE ONDE SOPRA O VENTO?



Caríssimas e caríssimos,

Hoje, Adérito Marcos reflete sobre “práticas de injustiça laboral travestidas de competitividade” que transformam “trabalhadores como recursos descartáveis”. As situações relatadas “toleradas e sub-repticiamente promovidas pelos governantes” remetem-nos para a nossa responsabilidade de cidadania… (ver ANEXO)


As reflexões de “DE ONDE SOPRA O VENTO?”, sem periocidade obrigatória, são um espaço aberto a todas e a todos que desejem trazer convocar os nossos corações para as esperanças e as dores do quotidiano, criando assim um espaço de diálogo cordial. Quem desejar pode enviar textos para graodemostardacomunidade@gmail.com



Fraternalmente,
 grão de mostarda


Da dignidade no trabalho



Não nos desenvolveremos como país, nem muito menos sairemos desta crise, quando práticas de injustiça laboral travestidas de competitividade forem um lugar-comum.







Neste últimos dois anos, aqueles em que a crise económica mais se tem feito sentir no nosso país, temos tomado conhecimento, uns mais que outros, de situações que demonstram um preocupante crescente desrespeito pela dignidade do ser humano enquanto trabalhador que se vê gradualmente aprisionado em procedimentos e comportamentos de quem contrata e/ou supervisiona, gerando relações laborais de autêntica escravização.

A reboque da crise e explorando sobretudo o clima psicológico que acompanha o medo do desemprego e da precariedade económica, impõem-se horários de trabalho para lá do contratualizado, responsabilidades não remuneradas, cortes arbitrários no salário, alterações do horário de trabalho, etc. A quem protesta é-lhe apontada a porta da rua ou a suspensão unilateral do trabalho.

Sabemos hoje com absoluta certeza que a produtividade e o desenvolvimento das empresas anda de mãos dadas com o sentido de justiça e de equidade no espaço de trabalho. O trabalhador é tanto mais motivado quanto se sente parte do projeto da sua empresa/organização e se vê respeitado como motor essencial para o seu sucesso.

Qualquer empresário experiente sabe que os seus trabalhadores constituem a seu ativo mais valioso, pelo que importa o seu acarinhamento em prol do desenvolvimento sustentável da sua empresa. Considerar os trabalhadores como recursos descartáveis, retirando-lhes espaço e dignidade, levará forçosamente a danos insanáveis nesse mesmo desenvolvimento.

Não se desenvolve a empresa, quando uma mãe operária se vê impossibilitada sistematicamente de ir buscar os filhos à escola ou de acompanhar a sua família em casa ao jantar, depois de uma jornada de 10-12 horas, porque repentinamente é necessária na fábrica e essas horas extraordinárias não chegam a ser remuneradas; ou quando o pai de família recebe um salário reduzido por quaisquer malabarismos de contabilidade; ou quando um jovem trabalha gratuitamente porque lhe é assegurado que como estagiário não tem ainda direito ao salário.  

Não nos desenvolveremos como país, nem muito menos sairemos desta crise, quando práticas de injustiça laboral travestidas de competitividade forem um lugar-comum, toleradas e sub-repticiamente promovidas pelos governantes.

A injustiça laboral mina a coesão no seio das empresas e organizações, gerando sentimentos de revolta e de frustração, e levando à inevitável desvinculação do seu projeto coletivo.

Os caminhos da escravização servem apenas os interesses obscuros do lucro e da ganância. Jamais conduzirão à coesão social e ao desenvolvimento sustentável de uma nação.



Adérito Marcos

45 anos,  irmão leigo membro da Paróquia S. Tomé, da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica – Comunhão Anglicana, Castanheira do Ribatejo; membro da comunidade grão de mostarda.

Contato: aderito.marcos@gmail.com



•Ilustração: Trabalhador rural nos Açores




ESCUTAR O AMOR



“O Reino de Deus é a possibilidade da Liberdade e da Irmandade proposta a todas as pessoas...” (Rui Santiago, in Liturgia das Horas 2)



Rui Santiago é padre católico da congregação dos Redentoristas
Ilustração: Diego Rivera

terça-feira, 25 de junho de 2013

ESPERANÇA: CAMINHO E HORIZONTE



Caríssimas e caríssimos,


Quais são as nossas “plataformas de esperança”? Em que ESPERANÇA fundamos o nosso SER?
Luísa Alvim, na sua Carta de resposta a Valentim Gonçalves conduz-nos ao seu tempo, ao quotidiano que, também a ela, a interroga… “Dos fracos, dos frágeis, dos pequenos, dos que não têm nada, dos que acreditam em respostas vêm sinais esperançosos.” E assim nos convoca os corações: “Mais do que uma revolução política e social, é preciso uma revolução interior…” (ver ANEXO)



Fraternalmente,

grão de mostarda


PLATAFORMAS DE ESPERANÇA


Caríssimo Valentim,



São inquietantes e perturbadoras as questões que levantas na tua última carta (*). Perguntas o que é que o Espírito continua a dizer às igrejas? Qual é a força do fermento no meio da massa? Por que é estamos a olhar o céu? 

As nossas cartas têm vindo a exprimir a esperança no caminho de hoje e para o futuro nas vidas que cruzamos com as nossas comunidades. Mas há na sociedade uma carência na escrita e na dádiva de “cartas de esperança” para a vida das pessoas. 

Visitou-me no local de trabalho um ex-recluso que trabalhou connosco num projeto de leitura e escrita durante a sua pena no estabelecimento prisional. Veio para pedir um poema que escreveu e para me mostrar as suas mãos. Eram mãos de trabalho, mãos calejadas e sujas. Fiquei feliz por estas mãos de esperança. Pelo trabalho que perseguiu para encontrar, pela força da procura num poema que escreveu, pela reconversão de vida que queria manifestar.

À porta da casa da minha filha, em Lisboa, dormem os sem-abrigo que os vizinhos teimam em afastar e a queimar os poucos haveres que possuem. Depois de uma dessas queimadas, na manhã seguinte, o prédio acordou com um grafiti na parede em que está escrito FUTURO e um barco pintado que ruma ao horizonte.
Recentemente, as crianças da catequese escreveram cartas a Jesus no dia da sua primeira comunhão. Pérolas de oração de confiança. Agradeciam tudo o que têm e o que são. O Gil escreveu:

“Querido Jesus:
Obrigada por tudo:
Pela vida
Por este belo planeta
Ajuda-nos e protege-nos.
Ámen.”

A semana passada, na Praça de S. Pedro em Roma, durante a audiência do Papa, vi uma mulher com um filho entregar uma carta dirigida ao “Papa Francesco” a um polícia. Este perguntou-lhe se tinha lá dentro o nome e a morada, depois atravessou a praça, subiu a escadaria dirigiu-se ao secretário do Papa e entregou-a. Sem antes garantir veementemente à mulher que o Papa lhe responderia. 

Estas são as minhas plataformas de esperança. 

Dos fracos, dos frágeis, dos pequenos, dos que não têm nada, dos que acreditam em respostas vêm sinais esperançosos. É desta força que o fermento faz crescer a massa. Esta é a minha gramática da esperança. É aqui que do nada se gera o amor que muda o mundo. Com Jesus, sabemos que temos que ser iguais aos sem nada, aos sem terra, aos sem-abrigo, aos pequenos. Pois são estes que estão dispostos a acolher a esperança.

Mais do que uma revolução política e social, é preciso uma revolução interior ao homem na contramão redentora: para encontrar Deus, que nos enche de privilégios, é preciso ir a Jesus que se faz igual a cada um de nós. 

O que é que o Espírito continua a dizer às igrejas? Pressuponho que as Igrejas têm que ser uma presença qualificadora do homem e da mulher no bem-estar social, no tratamento igualitário entre seres. Têm que rejeitar a forma arrogante como a economia neoliberal nos diferencia. Terão que ser fontes evangélicas a alimentar a humanidade no encontro sagrado entre si e o Pai. Terão que ensinar o homem e a mulher a confiar no advento dos privilégios e nas dádivas de Deus na vida de cada um, através da procura da igualdade social que Jesus nos propõe.

Ter esperança no horizonte futuro é fazermos no hoje das nossas vidas diárias uma luta pela igualdade. Lutar para que a fraqueza e a pobreza a social desapareçam e possamos finalmente ser fracos e “pobres em espírito”, necessitados do Amor, falíveis e imperfeitos para acolher o Pai. 

No hiato entre o desespero e a confiança, recuperemos a salvação e a Justiça do Deus cristão, que Torres Queiroga nos fala[i]: Deus é Pai e Mãe de todos e quer o bem e a igualdade para todos os homens e mulheres.

Haja uma esperança ressuscitada!

Abraço fraterno,

Luísa Alvim, que acredita que cada ser humano será um privilegiado se encontrar Jesus na sua vida





(*) Publicada a 17 de maio passado.



[1] Del terror de Isaac al Abbá de Jesús: hacia una nueva imagem de Dios. Editorial Verbo Divino, 2000






Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito –, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – atualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível


Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. A população do Prior Velho (concelho de Loures) conhece este missionário do Verbo Divino, desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, assume também trabalho pastoral na antiga Quinta do Mocho (atual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma população de imigrantes africanos.















segunda-feira, 24 de junho de 2013

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

escutar a vida, a vida que trazemos dentro (e fora) de nós… Escutar é certamente a arte que mais amabilidade exige dos nossos corações. O pe. Henrique Scheepens alia hoje, à evocação do exemplo de um seu companheiro missionário, o caso do Zeca, um imigrante que ele escutou até partir, finalmente reconciliado consigo mesmo, para a sua terra... (ver ANEXO)

Fraternalmente,
grão de mostarda

Saber escutar… e escutar o Zeca





Escutar a vida: faleceu um confrade com quase noventa e dois anos. Foi um homem sem espalhafatos, fumando os seus cigarilhos e lendo policiais de Simenon mas com uma sensibilidade muito especial para com pessoas de idade e doentes: tranquilizava-as, mesmo aquelas que sofriam dum cancro. Observei esta vida, escutei esta vida e aprendi com este estilo de vida. Escutar a vida, fê-lo exemplarmente. Sempre teve muita dificuldade com as suas homilias mas não com as pessoas. Foi grande na escuta. 


Escutei eu a vida do Zeca, um imigrante que veio depois de ter servido a tropa no seu país sem ter participado em guerras. Zeca deve ter uns 50 anos. Deixou a mulher e 2 filhos na terra natal e não manteve contato com eles. O seu trabalho foi na construção civil, vivia num bairro de lata até a demolição realizada pela Câmara que, em 1993, recenseou os que nesse bairro viviam, mas o Zeca não foi recenseado com a consequência de ser excluído do direito a uma casa. Não sei porquê mas ia perdendo a cabeça, sofria de alucinações: começou a falar aos aviões que passavam por cima dele, escrevia mensagens que recebia deles e entregava-mas. As mensagens tinham a ver com guerra, bombardeamentos, Russos, Alemães e Americanos, droga, presos, polícia da zona, muitos perigos no meio disso tudo. Ele ficou sempre tranquilo, recebia os amigos com quem bebia os seus copos na sua instalação, algo de alvenaria e um telhado com chapas de zinco com plástico em cima para não chover dentro. Ao todo abrangia 3,50 m por 2,7 metros sem janelas. Uma empresa tirou toneladas de terra do terreno onde se encontrava; respeitaram-no, deixando-o em cima de uma colina de 4 metros. Na encosta cresceram entretanto arbustos que agora quase impedem ver as paredes e o telhado deste “habitat”. Vive de estacionamento de carros, dois dias por semana; o dono de um bar dava-lhe comida assim como outras pessoas. O centro social da paróquia ofereceu-lhe uma refeição por dia, oportunidade de tomar banho e lavar a roupa mas nunca, no correr dos anos, aceitou essa oferta. 


Apareceu, num belo dia, um filho, bolseiro para estudar cá, que o procurou durante bastante tempo e encontrou-o! O pai nunca me tinha falado em filhos. Entrou em construção o mútuo afeto. A Câmara e a assistência social procuraram uma resposta à situação. A comunidade cristã a que as voluntárias e o “padre católico” pertencem, como Zeca sempre dizia, foram abordados e participaram em duas reuniões de 2 horas com este pessoal todo sem nenhum resultado. O Zeca negou saída dali e não lhe ofereceram casa.


Um telefonema de uma Associação, responsável pela Urbanização da zona, alertou-nos: agiu e organizou o regresso à terra natal, em conversa com o próprio, com o filho e com a embaixada. O Zeca regressará brevemente na companhia do filho, à sua terra. Esta solução sempre foi vista como a melhor mas nunca nenhuma entidade disponibilizou o pagamento das despesas. Essa Associação paga tudo e garante, durante um ano, algum dinheiro para que o Zeca não esteja sem nada no meio da família. Esperamos agora que o homem possa encontrar o acolhimento que merece e que, para casos semelhantes que são muitos, se possam encontrar respostas semelhantes.






Henrique Scheepens, padre da Congregação dos Sagrados Corações e corresponsável da paróquia católica de S. Bartolomeu da Charneca (Lisboa)