domingo, 15 de janeiro de 2017

ESCUTAR A VIDA



Nem sempre o nosso olhar vislumbra luz quando o "colocamos" com quem cruzamos no quotidiano... Impregnado de sombras que desconhecemos e condicionado por apreciações subjectivas, o olhar impede-nos a plenitude originária, a CONFIANÇA total na Vida.

"A confiança que habita no nosso íntimo não tem nada de ingénuo, vive aliada ao discernimento." (*) Seremos capazes desta lucidez no nosso olhar? A ingenuidade desresponsabiliza: se tivermos sabedoria e coração para usar o discernimento, isso permitir-nos-á olhar "mais fundo", sem que "nos contentemos com a etiqueta fácil", adverte o monge Carlos Maria Antunes, nesta sua primeira reflexão do ESCUTAR A VIDA (texto abaixo), hoje partilhada com Luísa Alvim (**), e que nos dá a leitura para início de caminho: o "desejo de ser corpo com a humanidade" é já "um desejo de quebrar a indiferença, a apatia o distanciamento ao outro."
Tenhamos nós a ousadia de romper com as indiferenças...
(*) Irmão Roger de Taizé in "Não pressentes a felicidade?", Paulinas, 2014
(**) Luísa Alvim, comprometida na paróquia católica de S. Victor, em Braga, no âmbito da catequese de infância.
       Carlos Maria Antunes, padre e monge cisterciense no Mosteiro de Santa María do Sobrado, Galiza (Espanha).

Fraternalmente,

grão de mostarda



Romper com as indiferenças
















UM OUTRO OLHAR 

Porque se fecham os nossos olhos e não repousam demoradamente num rosto onde só vemos crime, ódio, mal ou desgraça? De que nos defendemos? Por detrás do que não queremos ver ou do que nos custa ver, por detrás do horror e da fealdade, há muita vida sufocada que precisa de ser resgatada. E estas vidas, quando não nos são indiferentes, quando por elas nos deixamos tocar, têm muito para nos ensinar. Em vez de ficar preso a um juízo, se eu me abrir à vida de alguém onde, num primeiro olhar, só vejo o mal, não poderei descobrir dimensões da minha própria vida? 


Olhemos mais fundo, não nos contentemos com a etiqueta fácil. O que está a amarrar e a destruir aquela vida? Estarei eu tão distante? Se não tenho as mãos tão sujas, isso deve-se só a uma bondade que eu tenho e que o outro não tem? O que foi a história do outro? O que foi a minha história? Basta que um dia alguém me tenha agarrado pela mão enquanto o outro, ao meu lado, caiu sozinho e desamparado. Basta um acontecimento para mudar o rumo das nossas vidas. É tudo tão frágil!


Não há nenhuma vida que não revele a vida do outro. Somos tão próximos uns dos outros que até nos custa crer e preferimos fechar os olhos ou fugir diante do que nos assusta, porém, bem o sabemos, aquela vida que queremos recusar podia ser a nossa história. Todos somos seres singulares, no entanto, o património comum (e belo!) que é a condição humana nunca poderá ser ocultado por nenhuma singularidade. Queiramos ou não, o outro é da mesma carne do que eu e vive debaixo do mesmo Céu. Descobrir-se irmão de alguém que nos parecia tão distante, como se fosse de um outro planeta, faz-nos acreditar que a vida em comum é possível e que vale mesmo a pena. 

Carlos Maria Antunes




Neste princípio do ano novo, desejo um olhar largo, benevolente e próximo de todos e para todos. Quando falo de todos refiro-me aqueles que alcanço com a largueza da visão e a todos aqueles que na minha cegueira, ignorância e inabilidade ainda não estão presentes no meu coração. É um desejo de ser corpo com a humanidade. Sobretudo um desejo de quebrar a indiferença, a apatia o distanciamento ao outro. O corpo frio pode ser aquecido, o corpo abandonado pode ser beijado. Acreditar que as indelicadezas interiores que alimentamos podem ser purificadas por um sangue interessado no tecido líquido que circula à volta de cada um. Acreditar na humanidade como um sistema circulatório aberto, formado por elementos de natureza diversificada. Acreditar que "vivemos da vida uns dos outros…todos somos alimento para a vida do mundo" 1. 


É urgente estar no hoje do mundo com equidade, vivermos uns dos outros com justiça e percorremos caminhos deste ano bom, que se inicia, sem paralisias cardíacas. Atitudes que salvem, esperanças que restaurem, modos de ver que interpretem com simetria o outro. Vivermos como dois irmãos, o mesmo coração em dois corpos. 


No mundo, gerar movimentos de mudança, sermos "promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas, de modo criativo, como numa poesia". Sermos "poetas sociais" 2. No mundo interior, marcar o processo biológico com o selo da justiça e pela indefetibilidade doce do nosso olhar.

O romper com as indiferenças pode ser atravessado de inúmeras formas, escolho olhá-las por Cristo, com Cristo e em Cristo.


Luísa Alvim


1 http://www.monasteriodesobrado.org/index.php/2015/08/16/vivimos-de-la-vida-unos-de-otros
2 http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa-francesco_20161105_movimenti-popolari.html
Foto: Piedade Araújo Sol