domingo, 1 de maio de 2016

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

“Alugam-se seres humanos para escravatura”. Este anúncio poderia ser igual para todas as empresas ditas de recrutamento de “trabalho temporário”, mas cuja atividade não é a contratação, mas sim o desencantamento e a desestruturação social… O tema resulta de uma crónica de jornal, feita denúncia responsável.

Fara Caetano não permitiu que aquele fosse o “futuro” da sua vida. Natural do Porto, na Guiné-Bissau desde 2011, foi ela que decidiu desenhar a sua vida. Não no facilitismo, mas num empenhamento construído com crianças e jovens, para quem a vida ainda é feita de “pequenos nadas”.

Nesta reflexão Escutar a Vida deseja-se prolongar a ideia que deu fundamento aos PENSAMENTOS EM BUSCA desta semana.


ALUGAM-SE PESSOAS…



EM PORTUGAL, MAIS DE 200 MIL PESSOAS vivem dos chamados “trabalhos” temporários -com aspas, porque aqui a palavra não tem a dignidade que o seu conteúdo abrange.

Uma crónica do sociólogo José Soeiro denuncia, de forma sistematizada, o que já sabemos a este respeito (1). Há seres humanos considerados precários, a quem são exigidas “funções permanentes”. Isto significa que estão subordinados a uma circunstância de responsabilização duradoura para com quem os contratou, vivendo contudo quotidianos de sobressalto. 

A sua situação jurídica não deveria ser a de trabalhadores, mas sim de escravos: por quem receba 600 euros, o empregador terá de despender o dobro. “A natureza temporária do contrato é uma fonte de chantagem e de dominação….”, observa o sociólogo.

Naturalmente, ficamos perturbados com o que se passa, em matéria de contratação laboral, incluindo crianças, nos países distantes das nossas casas, os quais a Europa de Bruxelas considera “em desenvolvimento”. Mas vamo-nos apercebendo, cada vez mais, que o que diz respeito ao desrespeito dos Direitos Humanos está mais próximo do tapete da entrada de nossa casa. Talvez ainda somente tenha visitado a porta do vizinho do lado. E na sua maioria são vidas jovens tratadas como lixo... 

Só o ser humano é o único bem imprescindível para a concretização do trabalho, para todo e qualquer trabalho. Nenhuma máquina nem nenhuma tecnologia conseguem fabricar ou conceber outras máquinas ou outras tecnologias. Que se passa, então? José Soeiro responde: a receita das organizações que recrutam “trabalho” temporário aumentou 20 por cento. Não podemos esquecer, porém, que deste sistema resultam incontáveis milhares de outras vítimas - às 200 mil oficialmente referenciadas, há que juntar as pessoas que daquelas dependem, além de outros trabalhadores precários submersos no mundo da ilegalidade. 

A resignação subverte, como avisadamente já apontava, em 2012, o irmão Aloïs de Taizé:Sentimo-nos diminuídos face às estruturas de injustiças. Por um lado, a velocidade cada vez mais galopante do desenvolvimento técnico é formidável. Todavia, também nos destabiliza. Como podemos gerir esta tensão entre a convicção de que há apenas uma família humana e as diferenças que vemos, talvez mesmo perto de nós?”

E propunha “a experiência da pertença uns aos outros”. Ou seja, abrir o coração à capacidade de descobrir possibilidades, atitudes inovadoras, nem sempre fáceis, mas que não prosseguindo itinerários manchados pela lógica do egoísmo financeiro, poderão apontar horizontes novos, mesmo que localmente…

A FARA CAETANO CONCRETIZOU ELA PRÓPRIA A SUA ALTERNATIVA. Não se deixando aprisionar pela falência do túnel negro que lhe colocavam como futuro, atreveu-se a criar um outro modelo de sobrevivência, assumindo uma atitude libertadora de e com outros…  

“Se conseguir melhorar, de alguma forma, a vida de um aluno meu já fico feliz. Nem que seja através de um conselho que dei ou de um gesto que fiz. Tudo conta.” De modo simples e forma breve, é como ela nos dá o retrato da sua experiência, numa entrevista inexcedível pela alegria transparente que revela (2).

Não buscou na Guiné-Bissau a saída de emergência para a sua vida. Na biografia do medo e do individualismo, arriscou gravar uma atitude de confiança, através de uma entrega “àquelas que são as verdadeiras urgências de hoje”, utilizando ainda palavras do irmão Aloïs. Ou seja, a estruturação de uma nova Humanidade, para que não mais seja permitido alugar pessoas.

comunidade grão de mostarda

(1) Ver:


Foto: PÚBLICO - Inimigo Público, edição 12 Janeiro 2012

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