sábado, 14 de janeiro de 2012

ESCUTAR A VIDA

Caríssimas e caríssimos,

“Dar deve ser sempre no sentido de reforçar (ou mesmo recuperar) a dignidade de quem recebe... Não pode ser diminuir, dominar, impor ou tornar dependente”. Na reflexão desta semana de “Escutar a vida”, Adérito Marcos recupera o “ambiente” da quadra festiva de Natal e Ano Novo, com o seu cenário “recorrente e crescente da multiplicação de apelos à dádiva em dinheiro, géneros, trabalho voluntário”, conduzindo assim os nossos corações à “arte de dar” – “A arte de dar mais não é do que Amar, sem reservas, quem ajudamos”.

“Quando damos apenas distribuímos o que Deus nos colocou nas mãos…”, sublinha Adérito Marcos, trazendo-nos à memória as palavras do bispo Ambrósio de Milão (séc. IV) que também recordou que o que damos daquilo que nos sobra aos necessitados não nos pertence… E atual bispo de Milão, Dionigi Tettamanzi, no seu livro Não há futuro sem solidariedade (Paulinas 2009), a propósito da crise económica, actualiza as palavras do seu antecessor de há 17 séculos: “Não poderemos ser solidários se não formos sóbrios”, concluindo: “A sobriedade cria os espaços. Na mente, no coração, na vida, na nossa casa… a sobriedade abre aos outros, porque diminui a importância que damos a nós mesmos, aos nossos compromissos, às nossas escolhas que nos parecem absolutamente indispensáveis e que, um instante depois de as termos realizado, nos desiludem…”.

Fraternalmente,

grão de mostarda



Da arte de dar

Quando se dá uma mão num ato de ajuda, quiçá involuntário, visa-se geralmente que esse alguém a quem ajudamos ultrapasse um qualquer obstáculo, uma dificuldade momentânea, que assim que seja vencida, possa seguir com liberdade e autonomia o seu caminho. Também se pode dar a mão apenas para passear, oferecendo segurança, companhia ou apenas presença. Ou simplesmente dar a mão para sentir o outro, em sinal de afeto. A nossa mão quando oferecida com sinceridade e doação, não questiona a oportunidade do pedido. Dá-se apenas com gratuitidade. Quem dá a mão não se deve sentir obrigado nem obrigar quem recebe. Quem recebe deve saber aceitar sem perder de vista a sua caminhada, pois poderá (certamente será) ser chamado por sua vez a ajudar.
     

Na quadra festiva do natal e ano novo assistimos a um fenómeno recorrente e crescente da multiplicação de apelos à dádiva em dinheiro, géneros, trabalho voluntário, etc. Os apelos entram-nos casa a dentro através das televisões, da rádio, dos piquetes plantados à entrada dos supermercados, dos centros comerciais, sempre repetindo a mesma frase, algumas vezes já em tom de exigência: “Não quer dar nada para…?”

Umas vezes damos, outras ficamos na dúvida e em outras ainda recusamos, levados por um cansaço natural de quem se começa a “sentir obrigado a dar” mas não vislumbra a mão real e concreta do irmão, da irmã, que a estende e pede ajuda. Em consciência e no fundo da alma desconfiamos de tanta vontade de ajudar de entidades e personalidades da praça …

Depois, assistimos recorrentemente a programas de televisão que naquela época festiva (como se a pobreza e a necessidade não existissem durante todo o ano) nos expõem as vidas de privação dos mais pobres, dos sem abrigo, dos marginalizados, dos doentes, etc. Chegam-se a atingir cúmulos de despudor ao explorar a necessidade do pobre dando-lhe um qualquer objeto mas exigindo em troca louvores e hossanas ao benfeitor, geralmente a marca ou o canal de televisão. Teima-se em irromper em ceias de natal para os sem abrigo, forçando mostrar rostos, realizar entrevistas, onde muitos apenas desejariam a paz de uma refeição no anonimato. Quiçá sem consciência, mas quem assim procede humilha quem recebe: dá com uma mão o pão e retira com outra a dignidade, expondo o irmão necessitado como destroço humano face a uma sociedade voyeurista sempre sedenta de novas imagens. 

A vida ensina-nos que dar é uma arte construída com base no respeito profundo pelo outro. Dar é tomar consciência que hoje damos mas amanhã podemos ser nós a necessitar.

Dar deve ser sempre no sentido de reforçar (ou mesmo recuperar) a dignidade de quem recebe. É suportar a ultrapassar; é estar presente; é reconfortar; é apoiar na caminhada. Não pode ser diminuir, dominar, impor ou tornar dependente. 

Quando damos apenas distribuímos o que Deus nos colocou nas mãos … Sem paternalismo nem assistencialismo. Saibamos ser dignos da honra de dar com gratuitidade pois estamos a ajudar o próprio Deus que se revê nos mais pequeninos, nos mais necessitados. 

A arte de dar mais não é do que Amar, sem reservas, quem ajudamos.

Adérito Marcos

43 anos,  irmão leigo membro da Paróquia S. Tomé, da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica – Comunhão Anglicana, Castanheira do Ribatejo; membro do grão de mostarda; licenciado e doutorado em Engenharia Informática, agregado em Tecnologias e Sistemas de Informação, professor associado da Universidade Aberta.


Contato: aderito.marcos@gmail.com

•Ilustração: Bom Samaritano, Luca Giordano (1632‐1705)


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