sexta-feira, 8 de junho de 2012

ESCUTAR A VIDA


Caríssimas e caríssimos,

Escutadas as palavras interpeladoras do bispo católico Januário Torgal Ferreira, a propósito de um discurso do primeiro-ministro Passos Coelho, elogiando o “sacrifício extraordinário” dos portugueses, Paulo França deixa-nos uma reflexão que percorre o sentido sociológico da atual situação – do (des)respeito pela dignidade humana à (des)responsabilização pública (ver ANEXO).

Fraternalmente,

grão de mostarda

A propósito de um discurso...

A propósito do recente discurso do 1º ministro de Portugal, o bispo Januário Torgal proferiu declarações a um órgão de comunicação social em que fazia um paralelismo entre as declarações do atual 1º ministro e o discurso do presidente do conselho de há 50 anos atrás.

 O 1º ministro português elogiava o "sacrifício extraordinário que todos os portugueses têm demonstrado"[1] no contexto da última avaliação da Troika à evolução da situação económica do nosso país. O bispo Januário afirmava que “um senhor, que pelos vistos ocupa as funções de primeiro-ministro, dizendo um obrigado à profunda resignação de um povo tão dócil e tão bem amestrado que até merecia estar no Jardim Zoológico”. Conclusão: “Parecia que estava a ouvir um discurso de uma certa pessoa há 50 anos”, lamentou o bispo, acrescentando estar “profundamente chocado” e exortando à mobilização popular, dizendo: “Vamos todos hoje para a rua. Não vamos fazer tumultos, vamos fazer democracia.”[2].

Salvo o exagero e a metáfora de sermos tão domesticados, ao ponto de podermos ser promovidos a dignos habitantes do parque zoológico de Sete Rios, a verdade é que o discurso do atual 1º ministro português não se afasta assim tanto daquilo que o presidente do conselho dizia sobre o povo português, relevando a nossa “doçura de sentimentos, aquela modéstia, aquele espírito de humanidade, tão raro hoje no mundo; aquela parte de espiritualidade que, mau grado tudo que a combate inspira ainda a vida portuguesa; o ânimo sofredor; a valentia sem alardes; a facilidade de adaptação e ao mesmo tempo a capacidade de imprimir no meio exterior os traços do modo de ser próprio; o apreço dos valores morais; a fé no direito, na justiça, na igualdade dos homens e dos povos; tudo isso, que não é material nem lucrativo, constitui traços do carácter nacional. Se por outro lado contemplamos a História maravilhosa deste pequeno povo, quase tão pobre hoje como antes de descobrir o mundo; as pegadas que deixou pela terra” [3].

Vivemos claramente num período histórico bem diferente daquilo que era a Europa, o mundo e Portugal há 50 anos atrás. Todavia, há traços que se mantêm: a nossa modéstia, o nosso ânimo sofredor, a nossa facilidade em nos adaptarmos ao meio exterior e, por último, a pobreza.

Não nos é difícil perceber que o atual 1º ministro de Portugal se inscreve numa ideologia política conservadora e liberal cujas origens podem ser encontradas também naquilo que foi o Estado Novo. Mas há uma grande diferença entre estes dois líderes: falta ao atual 1º ministro a hipocrisia e o respeito que o presidente do conselho tinha aparentemente pelo povo português nos discursos que fazia.
O atual 1º ministro revela-se mais cínico, menos eloquente e mais pobre na sintaxe e na ordenação das ideias e do vocabulário, revela-se infeliz no que diz quando se refere ao nosso povo e não esconde subestimar os portugueses por saber que somos masoquistas, porque temos espírito de sacrifício e ainda continuamos doces, modestos, adaptáveis ao exterior e pobres. Se o presidente do conselho pensava isto do povo português, tinha a inteligência de não o dizer nos discursos públicos. Ao invés, o atual 1º ministro não é capaz de disfarçar e até incentiva-nos ao desenvolvimento da nossa capacidade de adaptação ao exterior, fazendo a apologia pública da emigração, a mesma emigração que Eduardo Lourenço afirmava, nos anos 70, no Labirinto da Saudade, como um fenómeno vergonhoso para um país. E, realmente, um 1º ministro que realmente tivesse consciência de servir o bem comum, dever-se-ia sentir envergonhado e desonrado por estarmos a ter índices emigratórios outra vez tão altos. Quanto à fé na Justiça, no Direito e na Igualdade entre os Homens que o presidente do conselho afirmava, essa confiança desmoronou-se. Não acreditamos na eficácia e na verdade da Justiça e do Direito, não acreditamos na Igualdade tendo em conta as injustiças e desigualdades que estamos a assistir em crescendo no nosso país. Não confiamos mais em quem nos governa porque nos mentem, porque não nos apresentam uma fatura transparente e objetiva que justifique aquilo que estamos a pagar, porque não têm respeito por nós e pelo nosso dinheiro. Não confiamos no Parlamento e no aparelho de Estado porque desconfiamos que aquela gente toda continua a receber os seus subsídios de Natal e de férias, porque isto de sacrifícios é para o povo português, porque somos sofredores e temos espírito de sacrifício, porque temos a doçura e a brandura que nos habilita à resignação e nos tolhe ante a revolta e nos reforça na capacidade de emigrar e de nos adaptar ao exterior.
 Mas, não estamos tão diferentes de há 50 ou até mais de 100 anos atrás. Já dizia Eça que “Portugal tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e caráter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela política.”[4]

Continuamos a ver os raros na sombra da política.

Esta crise que vivemos não se confina a uma crise económica, social ou financeira, a golpes palacianos de banqueiros e políticos com conivência da justiça corrupta, mas é mais profunda, porque é a Humanidade que está em crise, a solidariedade, a capacidade de partilharmos a vida com os outros, a igualdade de direitos, a justiça social, o emprego. Fomos enganados, iludidos na democracia que nos integrou na UE. Tiraram-nos o trabalho e a produtividade, desmantelaram-nos o setor produtivo, esmagaram-nos a agricultura, espezinharam-nos a educação, reforçaram-nos no medo de existir de que nos fala o filósofo José Gil. Mas percebe-se cada vez mais que a solução tem de passar muito pela solidariedade, não só da sociedade civil, porque somos nós quem sustenta o país em termos de impostos, somos nós que pagamos a saúde, a educação, os transportes e somos nós quem sente a perda de qualidade de vida nesses setores fundamentais e o seu encarecimento exponencial.

Há mais de um ano atrás, Boaventura Sousa Santos[5] vaticinava que, após a intervenção do FMI em Portugal, “os portugueses seriam induzidos a ver como uma necessidade e não como um certificado de óbito às suas aspirações de progresso e de dignidade” aquela intervenção. Para além disto que se veio a confirmar volvido mais de um ano, o mesmo sociólogo invocava a realização de uma auditoria da dívida externa para podermos ter uma ideia clara do que realmente se passa em termos de proporção. Também apontava outra solução para as “necessidades financeiras de curto prazo”, em vez de recorrer ao FMI, fazê-lo no espaço lusófono da CPLP (Brasil e Angola) e a China como credores por terem manifestado a confiança na recuperação de Portugal. O mesmo sociólogo apontava a ideia de criar um mercado transcontinental a partir da CPLP num triângulo liderado pelo Brasil, Angola e Portugal. Investir na nossa especialização industrial já muito avançada e na formação avançada e investigação científica. Tudo isto tendo em conta a ideia de que o projeto europeu está a demonstrar o seu claro falhanço. Se o nosso povo continua modesto e sofredor, o nosso país tem sido tratado da mesma maneira pelo eixo franco-alemão e com a subserviência dos nossos governos e da nossa fraca diplomacia internacional que partem de um princípio de que estamos a mais, de que somos dispensáveis e sempre devedores e de que somos filhos de um deus menor e pouco respeitáveis.

Para terminar, diga-se o que se disser, a maior diferença entre o presidente do conselho e o 1º ministro atual é sobretudo uma diferença de fundo, de sistema e de regime, o último “governa” na democracia e está legitimado pelos eleitores de forma livre e sem eleições viciadas como há 50 anos atrás. O mesmo povo que o legitimou também pode mudar de ideias e ter razões bastantes para dizer “basta” e derrubar as grades do zoo lusitano à beira mar plantado. Tudo isto pode passar pela solidariedade e coesão populares cá dentro e numa solidariedade internacional do tal triângulo político, económico e social entre Portugal, Angola e Brasil. Para esta solidariedade internacional precisaremos de outros homens que saiam da sombra e sejam capazes de servir o bem comum e saibam dialogar, negociar com os seus parceiros.

Paulo França

Foto: ©Katarina 2353


 






[4]In Correspondência Completa de Eça de Queirós. Lisboa, Caminho. 2011
[5] In Público, 08 de Abril de 2011

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