sábado, 27 de agosto de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS?


Caríssimas e caríssimos,
em Junho passado, Luísa Alvim e Valentim Gonçalves iniciaram um diálogo a convite do grão de mostarda, sobre o tema De que mundo somos?. Como então escrevemos, esta proposta constituía um desafio a ambos para que se interrogassem sobre o mundo em que vivemos. O Mundo com maiúscula. Ou seja, nas suas diversas realidades.
Escritas em jeito de cartas, estas reflexões quinzenais constituíram ecos de esperança na bondade humana, sem nunca deixarem de olhar os “lados sombrios” do quotidiano. E é nas propostas de confiança quer ambos foram tecendo ao longo deste tempo, que hoje alicerçamos a reflexão desta semana, escrita pelo grão de mostarda, como ficou combinado, após quatro cartas trocadas entre Luísa Alvim e Valentim Gonçalves.
Com estima fraterna,
grão de mostarda
Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.
Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.



Carta do grão de mostarda para Luísa Alvim e Valentim Gonçalves
Caríssima Luísa e caríssimo Valentim,
“Quando sonhamos sozinhos, tudo não passa de um sonho. Mas, quando sonhamos juntos com alguém, então o que se sonhou começa a concretizar-se”. No seu livro Was ich glaub (1), Hans Kung cita estas palavras do carismático bispo brasileiro Hélder da Câmara, para ilustrar a sua convicção no sonho que alimenta, e logo a seguir assim expressa: “Também o meu sonho é sonhado por muitos, a minha visão de um cristianismo reconciliado, de paz entre as religiões e de uma autêntica comunidade de nações é partilhada por muitos. Do mesmo modo que Martin Luther King, não viverei para ver a concretização da minha visão. Mas também não a levarei comigo para a sepultura. Será propagada pelo desejo que gerações inteiras alimentam de um mundo mais pacífico, mais justo, mais humano. Nisso eu creio, nisso eu espero”.
Depois de se tornar a ler as vossas cartas, o sentimento que nos invade é o mesmo de Hans Kung: o desejo de um “tempo novo”, de uma humanidade mais fraterna não está abandonado… Relendo cada ideia, cada experiência que, ao longo de mais de dois meses, partilhastes connosco, uma convicção ganha raízes mais profundas em nós: é possível fazer desta Terra um lugar habitável. É possível uma visão esperançosa e confiante na vida.
Não podemos ignorar os sérios momentos de desumanização a que estamos a assistir – alguns recordados nas vossas cartas –, quer sejam de âmbito nacional ou internacional, mas a verdade é que também nos chegam sinais de esperança. Em cada semana, recebemos notícias de pessoas que, no silêncio do quotidiano, alimentam a bondade de coração, tornando-se dom em favor dos injustiçados, dos desprovidos de meios humanos ou materiais, dos abandonados. Chegam-nos ecos de solidariedade fraterna: uma médica, que após o trabalho no hospital, dedica o seu tempo a cuidar de uma octogenária a viver só, que não é sua familiar; um homem que se empenha em congregar os irmãos para que apoiem um outro irmão, acabado de sair da cadeia, mas a viver problemas de saúde e de estruturação interior; vizinhos que, no anonimato, auxiliam com alimentos a família de um ex-alcoólico, agora em busca de trabalho; um casal sem filhos que aceita acolher “tornar seu filho” um menino da Roménia, abandonado pela mãe num orfanato daquele país… e ainda outros que gastam o tempo a acompanhar e a escutar pessoas sós ou doentes, que muitas vezes, o que mais esperam é poderem contar com uma palavra de confiança e uma presença amável…
E aqui recordamos uma das cartas da Luísa Alvim (17 Julho), numa das ideias que mais sensibilizaram os nossos corações: “ (…) cada um de nós é tocado para exercer o seu modo de estar no mundo de forma exemplar (…). Intervir no nosso pequeno mundo, pode fazer a diferença posteriormente no todo, no esforço conjunto (...). A nova democracia terá que ser benevolente em si mesma”. Estas palavras levam-nos à interrogação: Como buscar um sentido para a vida? Ou seja, como me tornar “uma pessoa humilde interiormente que não deixe de se questionar com espírito crítico” e intervenha “igualmente em favor de outros, em favor dos que não têm voz ou não são escutados” (Hans Kung)?
Na resposta que o nosso coração procura, vamos pressentindo que o ser humano, como escreveu o irmão Roger, não foi criado para a desesperança, mas sim para a confiança. E se tudo começar na confiança, descortinaremos, pouco a pouco, caminhos para o momento crítico que vivemos, e assim identificado pelo Valentim, na sua carta de 9 de Agosto: “O escândalo do nosso mundo não está na falta de meios para viver, mas na ausência de motivação para partilhar, sabendo que o pouco quando repartido sacia mais do que o muito retido”. Mas é nos períodos duros da história da Humanidade que, muitas vezes, basta “um punhado de mulheres e homens, dispersos sobre a Terra” para “inverter o curso de certas evoluções históricas” (irmão Roger). Saibamos nós acolher o milagre do Reino de Deus – propõe o Valentim, na carta acima citada, ao recordar-nos o relato da “multiplicação dos pães”, no evangelho de Mateus (2), e no qual Jesus solicita aos discípulos que repartam os seus “cinco pães e dois peixes” por mais de cinco mil pessoas…
De que mundo que somos? Por entre as nossas noites, buscamos viver na confiança de que o nosso sonho é também sonhado por muitos, como acredita Hans Kung.
Com estima fraterna,
grão de mostarda
(1) Usamos a versão espanhola Lo que yo creo (Editorial Trotta, Madrid, 2011)
(2) ver Mateus 14, 13-21
Foto: © Taizé

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