sábado, 15 de dezembro de 2012

ESPERANÇA: CAMINHO E HORIZONTE



Caríssimos e caríssimas, 

 Luísa Alvim* e Valentim Gonçalves ** reflectiram connosco, durante um ano, até Junho passado, questões essenciais da vida, através das cartas “De que mundo somos?” que foram escrevendo um ao outro.

Relidas as suas cartas, reconhecemos-lhes um traço comum: a urgência da esperança. De uma esperança actuante, de busca de sentido… “Um novo céu e uma nova terra”. 

Assim, propusemos-lhes novas cartas, com novo mote – ESPERANÇA: caminho e horizonte – e que hoje iniciamos com a “reflexão de arranque” que ambos solicitaram que fizéssemos. E é de Etty Hillesum, a filha de casal judeu morta em Auschwitz, que recolhemos a inspiração, a partir de uma questão, que já em plena deportação dos judeus, ela se coloca: “Gostava muito de viver como os lírios do campo…” (ver ANEXO).

Com estima fraterna,

grão de mostarda


Ser como os lírios do campo…

Caríssima Luísa e caríssimo Valentim,

Etty Hillesum, no seu diário redigido durante a inominável crueldade nazi, escreveu: “Gostava muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo” (1).

Etty estava absolutamente consciente da situação de precariedade, não apenas material, mas sobretudo humana que então se vivia. E apesar do que presenciava no campo de concentração de Westerbork (Holanda) um “foco de sofrimento humano” –, o que a impelia era nunca perder o sentido de “como na realidade a vida é bela, digna de ser vivida e justa, sim, justa”. Daí a urgência em desejar “viver como os lírios do campo” e a ânsia de que os outros compreendessem “esta época”, para que também fossem capazes de assim viver…

Em Westerbork, Etty empreendera um despojamento absoluto – “ (…) foi lá, entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta vida”. Ali, antes de ser deportada para Auschwitz, iniciou uma peregrinação pelo essencial, que a levaria a deixar nos apontamentos daquele dia 22 de Setembro de 1942 palavras de esperança, ao evocar aquela passagem evangélica de Mateus (2).

O reinado de Deus: horizonte e caminho…

A escassez de atitudes humanizadoras, como a que se instalou no nosso tempo em diferentes instâncias políticas, financeiras e sociais, parecem constituir sempre um obstáculo a decisões de esperança. Sobretudo pelos diversos medos que suscitam, condicionando a própria liberdade humana… O monge beneditino Anselm Grün, porém, recorda-nos: “Mesmo que a liberdade esteja limitada… a nossa missão consiste em decidirmo-nos pelo bem” (3). 

As decisões de esperança somente surgirão a partir da bondade humana. Não é uma ingenuidade. E Etty compreendeu e experimentou isto no seu interior, num momento da história humana que exigiu, a ela e a milhões de pessoas, um desprendimento total. E assim se encaminhou para o essencial… 

O que agora nos é dado experimentar, neste nosso tempo, revela-se também um irresistível convite a percorrer caminhos nos quais se recupere o essencial do ser humano.

Caminhos interiores, que levam a aprofundarmo-nos. Não apenas na nossa fragilidade, nas nossas amarras e opacidades, mas também nas nossas possibilidades aquilo que, em cada ser humano, é mais fulgurante, mais genuíno: a simplicidade e a generosidade, que nos tornarão capazes de “viver como os lírios do campo”. Este desígnio permite-nos avaliar os caminhos, pessoais e colectivos, reveladores da urgência de atitudes transformadoras deste nosso tempo numa “época de esperança”…

Recuperando a passagem de Mateus (4). Que diz Jesus? Começa por afirmar: “Ninguém pode estar ao serviço de dois senhores, pois ou odeia um e ama o outro, ou agradará a um e desprezará o outro”. E logo faz um conjunto de recomendações – “não andeis angustiados pela comida e bebida para conservar a vida ou pela roupa para cobrir o corpo” – que, à primeira vista, poderão parecer desresponsabilizadoras.

No discurso de Jesus, porém, o essencial é a felicidade humana, a fraternidade universal. O seu horizonte é aquilo que na linguagem evangélica se designa por Reino de Deus. 

Mas “não se trata de uma felicidade barata e rápida, em que andamos à nossa volta e ignoramos todos os aspectos negativos do mundo…”, anota Anselm Grün (3). Jesus, de facto, adverte-nos que não podemos servir a “dois senhores”. Não ensina a despreocupação, com a nossa vida pessoal e a vivência em sociedade. O apelo que faz é o de uma conduta ética que nos convoca à mudança do objecto das nossas preocupações, e assim inscrita na conclusão do seu discurso: “Buscai antes de tudo o reinado de Deus e a sua justiça…”. Aqui reside a chave de interpretação da proposta de Jesus: só na mudança de paradigma, na mudança de objectivos, pessoais e colectivos, poderemos “viver como os lírios do campo”. Somente quando se desce ao essencial, àquilo que torna a vida um acto de generosidade é que poderemos viver “despreocupados” como as aves do céu e os lírios dos campos… porque só a simplicidade permite a generosidade. 

De contrário viveremos, sempre, (pre)ocupados, senão mesmo obcecados, com a manutenção do sistema – “Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir?” – e não com “o reinado de Deus e a sua justiça”, enquanto horizonte e caminho de esperança... 

Com estima fraterna,

grão de mostarda

(1) Etty Hillesum, “Diário – 1941-1943”, Assírio & Alvim, Lisboa (Portugal), 2008. Etty (diminutivo de Esther) Hillesum, filha de um casal judeu de Amesterdão (Holanda), morre no campo de extermínio nazi em Auschwitz, a 30 de Novembro de 1943. O seu “Diário”, além de permitir descobrir o seu empenhamento humano e social, percorre o seu itinerário espiritual nos tempos conturbados da ocupação hitleriana

(2) “Observai como crescem os lírios selvagens, sem trabalhar nem fiar (…).” (Mateus 6, 27)  
(3) “O livro das respostas”, Paulinas (Junho, 2008)

(4) Mateus 6, 24-34: “Ninguém pode estar ao serviço de dois senhores, pois ou odeia um e ama o outro, ou agradará a um e desprezará o outro. Não podeis estar ao serviço de Deus e do Dinheiro. Por isso vos recomendo que não andeis angustiados pela comida e bebida para conservar a vida ou pela roupa para cobrir o corpo. Não vale mais a vida do que o sustento, o corpo mais do que a roupa? Observai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem amontoam nos celeiros. E no entanto o vosso Pai dá-lhes comer. Não valem vocês muito mais do que as aves? Qual de vocês, por mais que se preocupe, poderá prolongar um pouco o tempo da sua vida? E por que hão-de vocês andar preocupados com a roupa? Reparem como crescem os lírios selvagens sem trabalhar nem fiar. Contudo, digo-vos, que nem Salomão, com toda a sua riqueza, se vestiu como eles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada, quanto mais a vos há-de vestir a vós. Portanto, não andem preocupados, dizendo: Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir? (…). Procurem primeiro o Reino de Deus e a sua justiça. Não vos preocupeis com o amanhã, pois o amanhã se ocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu problema.”

*Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito –, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

**Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. A população do Prior Velho (concelho de Loures) conhece este missionário do Verbo Divino, desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, assume também trabalho pastoral na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma população de imigrantes africanos.


Foto: Gilberto Dutra

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