DE QUE MUNDO SOMOS?

Dia 23 de Maio de 2011

Caríssimas e caríssimos,

Não raras vezes, nos perguntamos pelo mundo em que vivemos; não apenas pela pequena realidade envolvente, a família, os amigos, o país, mas também por uma realidade mais profunda. De que mundo somos? Ou seja, em que fundamos as nossas opções, os nossos desejos, as nossas fidelidades, as nossas vontades, tanto no mais íntimo e pessoal como no mais abrangente, universal? Talvez o momento que atravessamos, no país e no mundo, nos coloque ainda mais interrogações… e, por isso, as exigências interiores que se nos colocam são certamente mais acutilantes. E as incertezas podem tornar-se caminhos de novas possibilidades, se permitirmos aos nossos corações manterem-se atentos à Esperança; não uma esperança ilusória, mas actuante…
Para reflectirem connosco estas questões essenciais da vida, convidámos duas pessoas, Luísa Alvim e Valentim Gonçalves, que colocam o “exercício da Esperança” no seu o quotidiano.

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.
As suas reflexões serão escritas ao jeito de cartas, estruturadas à volta da questão: De que mundo somos? O tom coloquial ajudar-nos-á a envolver no debate de ideias. E como ambos nos solicitaram que fosse o grão de mostarda a dar o “pontapé de saída”, aqui deixamos a “primeira carta”. Dia 6 de Junho, a Luísa Alvim escreverá a sua “carta” e, quinze dias depois, responderá o pe. Valentim. E assim será, cada quinze dias, até que ambos o desejem. Entre cada quatro cartas trocadas entre ambos, o grão de mostarda escreverá uma “carta de balanço”.

Caríssima Luísa e caríssimo Valentim,

Agradecemos-vos a disponibilidade com todas e todos nós partilhar este desafio: interrogarmo-nos sobre o mundo que vivemos. O Mundo, com maiúscula. Ou seja, nas suas diversas realidades e momentos. E como nos solicitastes um primeiro texto, aqui deixamos uma pequena reflexão sobre o que nos sugeriu o tema que presidirá à correspondência entre ambos. O facto de vocês não se conhecerem pessoalmente parece-nos muito estimulante: nem um nem outro escreverão a partir de um qualquer pressuposto, naturalmente resultante do conhecimento, porque este irá sendo, pouco a pouco, construído sobre o conteúdo das vossas cartas.
Sabemos que a fé no projecto de Jesus, que partilhamos, é seguramente uma ponte de diálogo, que todavia não será monocórdico: sabemos da vossa abertura de coração. Acreditamos que destas cartas nascerá, entre vós, uma amizade; para nós será um importante espaço de reflexão, gerador de novos espaços de debate.

De que mundo somos? A interrogação acompanha-nos a todas e a todos, sejam quais forem as razões que a motivem. Perante a alegria e a desilusão, a bondade e a maldade, o sorriso e a dor, a violência e a mansidão… Perante o desprezo e a amabilidade, a vida e a morte, quem de nós nunca se perguntou: “de que mundo sou?”.
Perguntarmo-nos pelo mundo a que pertencemos é, simultaneamente, perguntarmo-nos por nós. Ou seja, desejarmos viver fundados na realidade – “nada de ideias que não tomem terra” (Hans Küng). O autor do evangelho de João coloca no “discurso de despedida” de Jesus uma das mais significativas frases sobre a co-responsabilidade humana: “Não te peço que os tires do mundo, mas que os defendas das forças do mal” (João 17,15) – não somos chamados à fuga do mundo, ao desencantamento pela vida; somos, sim, chamados a implicarmo-nos em projectos de esperança, em “defendermo-nos das forças do mal”, o que significa optar por uma cultura/atitude de não-violência, de solidariedade, de tolerância e de igualdade entre todos os seres humanos.
Não podemos negar os avanços tecnológicos e científicos, culturais e políticos da humanidade. Todavia, o tempo presente é de interrogações: estamos confrontados “com colapsos ecológicos, económicos e sociais que desembocaram numa crise económica mundial, perante a qual os ‘defensores da Realpolitik’ e os grandes cérebros da economia e do mundo das finanças se encontram em grande medida desconcertados” (Hans Küng).
Esta situação não pode, porém, fazer-nos desacreditar no sonho… As palavras de Martin Luther King, pastor da Igreja Batista norte-americana, pronunciadas a 28 de Agosto de 1963, permanecem válidas: Eu tenho um sonho (I have a dream). E ainda que nos vejamos confrontados com as dificuldades de hoje e de amanhã, eu continuo a ter um sonho…”.
O nosso hoje terá de ser um olhar/viver de esperança actuante: o novo paradigma que nos leva a actuar em “pequenos espaços”, e que são os que alteram a maneira de ser da humanidade, os corações. Pode parecer pouco, ilusório mesmo, mas os movimentos históricos – políticos, sociais, económicos e culturais – têm-nos vindo ciclicamente a ensinar que não basta alterarem-se as estruturas. O que há a mudar é o coração – o mais íntimo, o cerne do ser humano… Só aí o sonho tem lugar, o sonho da solidariedade fraterna. Só assim será possível sonhar/construir o mundo a que pertencemos.
De que mundo somos? No meio das contradições da existência humana, guardamos as palavras de Paulo, na sua carta aos cristãos de Corinto: “O amor nunca terminará…” (1ª Coríntios 13, 8).
Com estima fraterna,

grão de mostarda

Caríssimas e caríssimos,

Há duas semanas, enviámos o texto de apresentação do diálogo entre duas pessoas sobre a questão: De que mundo somos? A Luisa Alvim e o Valentim Gonçalves aceitaram este desafio de, quinzenalmente, se interrogarem  sobre o mundo em que vivemos. O Mundo com maiúscula. Ou seja, nas suas diversas realidades.
Escritas em jeito de cartas, as reflexões destes dois cristãos vão passar a ser-nos remetidas quinzenalmente. Nesta semana é Luísa Alvim que nos traz a sua reflexão sobre o momento presente, fazendo eco de uma viagem profissional a Espanha: a realidade espanhola das “acampadas” e a forma como tratamos os imigrantes ilegais.
Para nos ajudar a compreender os conteúdos destas cartas (e que certamente serão, por vezes e naturalmente, recheadas de assuntos que tocam as suas próprias vidas pessoais, como é o caso da carta desta semana), deixamo-vos hoje as duas pequenas apresentações da Luísa Alvim e do Valentim Gonçalves, que entretanto já haviam sido enviadas no texto do grão de mostarda de há quinze dias.
Com estima fraterna,

grão de mostarda

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.

Carta da Luísa, dia 6 de Junho de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS? - Carta de Luísa Alvim para Valentim Gonçalves

Viva caríssimo Valentim!

Só nos conhecemos pela voz com que falamos ao telefone, mas temos muito em comum e pertencemos à família alargada dos que esperam e acreditam no crescimento espantoso do grão de mostarda!
Por isso, dar princípio a esta conversa, em forma de carta aberta, é de certo modo uma forma natural de comunicar e converter as nossas reflexões pessoais em algo mais social e partilhado.
O grão de mostarda lançou-nos o desafio de iniciarmos a conversa com a questão De que mundo somos? E avisa-nos que “nada de ideias que não tomem terra”, nas palavras do teólogo, que muito admiro, Hans Küng. Acho que bateram na porta certa, a nossa casa está bem assente no solo, a sua de certeza, a minha vai sendo construída em terreno seguro.
Permita-me que partilhe consigo a última semana, em que fiz uma viagem profissional muito rica e me permitiu olhar o mundo e interrogá-lo, desde a forma como tratamos os imigrantes ilegais até à realidade espanhola das “acampadas”.
Esta viagem foi antecedida por dois acontecimentos marcantes na minha vida pessoal: a “Oração de Taizé” na noite UPS, em que rodeada de 700 jovens a uma hora inusitada, 2h30 da manhã, rezamos em conjunto e me fez repensar na incrível e inesperada Igreja que ainda somos! É um mistério, ainda para mim, perceber como podemos ser comunidade orante viva. E um outro, de valor de topo: a 1ª comunhão do meu filho João e o seu coração aberto a Jesus. A sua espiritualidade, ainda líquida e simples, é deveras atraente. Quando lhe perguntei quem é Jesus, ele foi escavar na terra do quintal onde tinha escondido uma pequena chave que me trouxe. Disse-me: “Jesus é para mim a chave do céu”. Como gostava de ser assim parabólica como ele. Escavar no campo, encontrar o tesouro e abrir-me à transcendência do infinito!
Voltemos à viagem de travessia de Espanha até Madrid, de comboio. De madrugada, a carruagem foi acordada por um passageiro de raça negra que se tinha embebedado. Tinha reparado nele, no seu rosto jovem e sereno quando partimos no início da noite. Agora transtornado incomodava toda a gente. Pelas 3h00, os seguranças do comboio decidiram abandoná-lo numa estação na montanha, em Puebla de Sanabria. Percebi que era imigrante ilegal e a falta dos papéis foi o suficiente para o desembarcarem e lhe terem vasculhado a bagagem. Confesso que o meu estado de “meio adormecida” não facilitou a sua defesa, aliás nada fiz por isso, e de repente acudiu-me a ideia que nada faço no mundo pela defesa dos que não têm trabalho, identidade e dignidade. Estamos meios adormecidos, o que nos impede de lutar por um mundo mais justo e solidário, lutar pelos mais fracos e pelos cidadãos ilegais.
Em Madrid e Málaga deparei-me com as “acampadas” dos jovens nas praças, que reclamam por uma democracia real e apelam à esperança da mudança. Num cartaz que fotografei dizia “se não nos deixais sonhar, não vos deixaremos dormir”.
É isso que eu também desejo, que nos despertemos uns aos outros dos estados de sonolência e que permitamos a todos oportunidades e condições de sonhar um mundo melhor e mais ressuscitado.
Conhecendo as mudanças políticas recentes, sabendo da vontade de muitos jovens se “acamparem” exigindo a verdadeira democracia por este mundo fora, a resposta à pergunta “de que mundo somos?” só pode ter uma resposta esperançosa, e o sonho da solidariedade fraterna tem mesmo que ser realidade em 3D!
Abraço fraterno,

Luísa Alvim, que deseja que o mundo seja cada vez mais evangélico.

Caríssimas e caríssimos,

A carta de Luísa Alvim, há duas semanas, suscitou agora a Valentim Gonçalves uma reflexão de esperança, “que se vai tentando concretizar pisando a terra concreta do lugar e do tempo em que vivemos”.
O diálogo entre estes dois cristãos, iniciado a 6 de Junho, busca partilhas que se interpelem sobre o mundo em que vivemos. O Mundo com maiúscula. Ou seja, nas suas diversas realidades, como se escreveu na introdução à carta de Luísa Alvim, há quinze dias.
No final da sua carta, Valentim Gonçalves interroga o sonho que alimenta a esperança: “No momento crítico em que vivemos neste país, vejo as pessoas preocupadas com o pão de cada dia que vai faltando e eu também fico preocupado; mas, para além desta preocupação, eu tenho uma maior: como é que havemos de fazer para que o pão no futuro não falte?”.

Dia 4 de Julho, Luísa Alvim retomará este diálogo, proposto sob o tema De que mundo somos?
Fraternalmente,

grão de mostarda

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.

Carta do Valentim, dia 20 de Junho de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS? - Carta de Valentim Gonçalves para Luísa Alvim

Estimada Luisa,

Foi através do grão de mostarda que chegámos ao conhecimento mútuo. Apesar de só uma vez termos falado, ao telefone, creio que para continuarmos este diálogo já temos um ponto de partida, identificando vários elementos que nos põem em sintonia ao começarmos e nos podem orientar para o futuro:
Começo pela simbologia do grão de mostarda, acreditando que as forças transformadoras se podem encontrar naquilo que quase se não vê, na mente e no coração das pessoas; depois acredito que é fundamental ter um sonho a alimentar-nos na esperança de um mundo diferente e melhor; um sonho que se vai tentando concretizar pisando a terra concreta do lugar e do tempo em que vivemos; nessa linha sintonizo com H. Kung, um crente que não se contenta com repetir o que os outros disseram, que não acorrenta a verdade, mas que sempre a busca acolhendo as surpresas da sua revelação paulatina e nunca terminada.
Sintonizo com experiências como a que tens de Taizé, que eu conheci nos tempos do Vaticano II e visitei em 1970, e que ainda hoje me cativa como sinal do Reino pelo seu apego ao Evangelho de Jesus, como instrumento de reconciliação no meio das igrejas e do mundo, como expressão da simplicidade profunda do modelo de seguimento de Jesus (muito escondido na nossa Igreja por adereços supérfluos e sem sentido). E fico feliz por a “Peregrinação da Esperança” de 2004/5 ter deixado uma semente na minha paróquia, onde mensalmente um grupinho de jovens, e não só, se reúne para a “Oração de Taizé”.
Mas também a tua experiência no comboio de Espanha, relacionada com o imigrante ilegal e que criou em ti uma certa perplexidade, me faz lembrar as numerosas vezes que, ao longo dos últimos 20 anos de proximidade aos imigrantes africanos, tenho vivido idêntica sensação: um misto de indignação contra o que não é razoável – um atentado à inteligência humana, como costumo dizer; uma desconfiança nos instrumentos legais que estão ao serviço não de quem mais precisa, mas antes ao serviço de quem está bem e não quer ser incomodado; um sentimento de impotência perante uma máquina enorme, pesada e ronceira que, até quando parece que vai avançar, acaba no último momento por ficar no mesmo sítio; mas ainda perplexidade perante o mal-estar que me invade quando alguém, depositando em mim a sua confiança, partilhou o seu problema, procurámos juntos uma saída e, no fim, nada se conseguiu, sendo desta forma as expectativas transformadas em frustração. Mas, apesar desse aspecto doloroso, continuo convencido de que valeu a pena, pois que o sonho, com os pés firmes na terra e com o espírito no ensinamento e no exemplo de Jesus, é uma semente lançada à terra, que oportunamente desabrochará e dará fruto. Desgraça seria perder essa capacidade de sonhar.
Por isso, no momento crítico em que vivemos neste país, vejo as pessoas preocupadas com o pão de cada dia que vai faltando e eu também fico preocupado; mas, para além desta preocupação, eu tenho uma maior: como é que havemos de fazer para que o pão no futuro não falte? O que fazer para que ninguém precise de viver de esmolas, quando estiver ao seu alcance viver do fruto das suas mãos? Como ir criando um mundo onde cada pessoa se sinta comprometida na construção da casa comum que é o espaço e o tempo em que vive? Por isso fixei uma frase do Fr. Bento Domingues no Público, de 29 de Maio: “Hoje, perante as inumeráveis vítimas da crise do império universal da especulação financeira, que sugere o Espírito de Cristo às Igrejas, a nível local e global, para descobrir os caminhos de uma nova cultura global?” Se todos os que nos reunimos para a Eucaristia dominical vivêssemos esta preocupação, seguramente que iríamos encontrar formas de ir transformando este num mundo melhor. Esta perspectiva dos pés na terra não colhe muito na espiritualidade corrente. Mas há que ter confiança e sobretudo há que ir dando novos passos.
Vamos continuar. Por isso até sempre.

Valentim Gonçalves

Caríssimas e caríssimos,

Neste diálogo, iniciado em 6 de Junho, sob o tema De que mundo somos? esta carta de Luísa Alvim deveria ter sido publicada no passado dia 4. Mas como o computador do grão de mostarda teve de ir ao “hospital”, só hoje foi possível enviar-vos esta reflexão. Pedimos desculpa, à Luísa Alvim, ao pe. Valentim Gonçalves, assim como a todas e todos vós que nos alimentais com a vossa presença.
Nesta sua carta, Luísa Alvim interroga-se: “Que abismos ou que céus propomos?”. 
A questão foi-lhe suscitada por uma preocupação colocada pelo pe. Valentim Gonçalves, na carta anterior: “No momento crítico que vivemos neste país(…) como é que havemos de fazer para que o pão no futuro não falte? Se todos os que nos reunimos para a Eucaristia dominical vivêssemos esta preocupação, seguramente que iríamos encontrar formas de ir transformando este num mundo melhor(…)”.
Na sua resposta, Luísa Alvim propõe o renascimento dos “valores essenciais”, para sejam possíveis caminhos novos para o tempo presente, recordando-nos a urgência de “atos de fé na bondade humana”. E referindo oportunamente o texto “Tempos de exigência”, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (da Igreja Católica) (1), faz eco de um filme excepcional, autêntica parábola sobre a benevolência. Pay It Forward deixa-nos antever a possibilidade de um “reino dos céus na terra”, usando a expressão de Luísa Alvim. Mas não ingenuamente… porque a eucaristia, escreve Luísa Alvim retomando a carta do pe. Valentim Gonçalves, “terá de ser a fonte de toda a comunicação da graça de Deus para recebermos energia e cumprirmos a bondade”, 


grão de mostarda
 
Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.

Carta da Luísa, dia 4 de Julho de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS? - Carta de Luísa Alvim para Valentim Gonçalves

Viva caríssimo Valentim!

Para que o pão não falte, para que o amor não termine… são desejos que deixou na sua última carta, e que me deixaram a pensar igualmente que mundo estamos a construir, tanto a nível do nosso microcosmos como a nível global.
Interpela-me quando fala da comunidade cristã, especialmente da presença na Eucaristia de domingo, e o que transportamos depois para o espaço e para o tempo em que vivemos. De que forma se vive esta graça eucarística, este momento espiritual potentíssimo? De que modo amamos e vivemos com os outros, depois da reunião comunitária para celebrar Jesus?
Sabemos que o reino se inaugura quando saboreamos o banquete. Mas que portas abrimos aos outros? Que abismos ou que céus propomos? Que ligações fazemos na terra?
«Tempos de exigência» é um documento publicado recentemente pelo Grupo Sociedade e Política do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, que vem lembrar que a época contemporânea é um tempo conturbado, por um lado os desistentes e os decepcionados da política, e por outro, aqueles que ainda foram votar no 5 de Junho e que ainda têm esperança na mudança. O documento exprime que a sociedade terá que exigir mais dos políticos, mais profissionalismo e uma luta mais forte pelos interesses dos cidadãos, e que os políticos sejam uma real contribuição para a reconstrução do país.
Por todo o mundo a crise atravessa a vida de todos, e a ideia que é preciso fazer “renascer” valores essenciais, como a solidariedade, a união, a vida digna, entre muitos outros, vai ganhando força e “partidários” que se identificam no descrédito pela política e pelos seus atuais intervenientes.
A crise faz nascer e renascer reflexões e atitudes novas, o Grupo Sociedade e Política propõe mesmo a reinvenção de uma nova democracia.
Lembro a Islândia, que em plena crise financeira, debate e pede a contribuição de todos os cidadãos para a elaboração de uma nova proposta de Constituição, bastando enviar as sugestões e ideias, que depois de revistas por um moderador, serão publicadas na página no Facebook, propondo uma experiência única de comunicação entre sociedade civil e os políticos, para a reconstrução de um país. Vamos aos poucos encontrando novas democracias.
Por isso cada um de nós é tocado para exercer o seu modo de estar no mundo de forma exemplar, mesmo que não se tenha vocação de participação política. Intervir no nosso pequeno mundo, pode fazer a diferença posteriormente no todo, no esforço conjunto.
Recentemente, vimos em família o filme "Pay It Forward"(2000) na tradução portuguesa Favores em cadeia, da realizadora Mimi Leder. Uma história simples baseada na ideia de que quando ajudamos alguém, lhe fazemos um favor, e dizemos que não queremos que nos seja retribuído, mas terá que o fazer a três outras pessoas que, em troca, fazem o mesmo a outras três, e assim sucessivamente criando uma cadeia crescente de bondade, infinitamente imparável, criando versões novas para a democracia participativa, ou em palavras evangélicas, criando versões novas para um reino dos céus na terra.
É preciso hoje ter atos de fé na bondade humana, interagir com o mundo, “passar para a frente” os outros e permitir “favores” a pessoas que se cruzam connosco na vida. Benevolência. A nova democracia terá que ser benevolente em si mesma.
Acredito que no seu trabalho evangélico em tudo e em todos olha oportunidades únicas para convidar os outros para o banquete do reino. E como desejava, na sua última carta, a eucaristia terá que ser a fonte de toda a comunicação da graça de Deus para recebermos energia e cumprirmos a bondade.
Abraço fraterno,

Luísa Alvim, que deseja que a eucaristia seja cada vez mais participativa, de todos e para todos


DE QUE MUNDO SOMOS? - Carta de Valentim Gonçalves para Luísa Alvim

Estimada Luísa,

Fazendo eco da tua reflexão, olho para o Evangelho que, nos últimos domingos, nos encaminha para a resposta que todos procuramos quando nos interrogamos: De que mundo somos? Para que vivemos? O que é que vale a nossa vida?
Aponta-nos ele para o Reino de Deus como o tesouro que catalisa todas as energias com vista à sua posse; aponta-nos não para uma coisa, uma organização, uma instituição, mas sim para uma atitude que constitui o coração da fé do crente: saber-se envolvido por Alguém que nos conhece e nos ama e nos propõe corresponder a tal proposta, com uma atenção constante ao que se passa ao nosso lado.
As cenas dos últimos dias – a fome na Somália e os atentados em Oslo – manifestam o anti-Reino, a negação do mundo que Deus nos propõe construir: são expressão da ganância, do egoísmo, do só ver o presente, do fechar-se sobre si mesmo ou sobre os interesses do seu grupo. Por outro lado, ainda há dias recordámos uma figura extremamente inspiradora: Bento de Núrsia que, com um futuro brilhante à sua frente na Roma imperial (debruçada sobre o momento feito de abundância, mas despida de critérios morais apontando para mais longe), decidiu retirar-se para a solidão da gruta de Subiaco, onde foi descobrindo os contornos do tesouro da sua vida e os meios de o possuir. Nesse aparente perder da vida, ele a foi consolidando e oferecendo aos outros um exemplo de tal modo mobilizador que, nesse apagar-se, ele e os seus irmãos conseguiram mais do que ninguém ir transformando o  mundo decadente de Roma e o mundo bárbaro das guerras, dos saques e da violência numa  Europa mais humana e com uma visão mais configurada com o Evangelho.
Mas não só o que os media nos fazem chegar me tem feito reflectir: também aquilo que me rodeia, como as expressões do tesouro da alma de pessoas que na sua simplicidade, pobreza, dureza de vida, manifestam uma profundidade espantosa, que as torna serenas e com capacidade de sorrir; olho também para aquelas cujas vidas me parecem ser um vazio tremendo, onde não se vislumbra qualquer chama de entusiasmo ou de paixão, seja pela família seja pela comunidade: vive-se o presente, só animado talvez por um desafio de futebol na televisão, acompanhado de umas boas cervejas, que também contribuem para fugazes momentos de entusiasmo à volta de um golo ou de uma controversa decisão do árbitro da partida; olho para aqueles que com tanto esforço e entusiasmo estão levantando projectos e que de repente são surpreendidos por obstáculos às vezes imparáveis; olho para aqueles que comigo vão acompanhar os mortos ao cemitério (o que eu por ofício faço frequentemente) e nesse caminhar temos uma visão mais ampla, desde o morto, aos  que o acompanham, aos aviões que sobrevoam por cima de nós, à paisagem bela que de lá conseguimos enxergar desde o rio, ao Parque das Nações, ao Aeroporto… e aí vem sempre a pergunta: mas quem sou eu? Qual o sentido da minha vida muito concretamente neste momento de crise e neste lugar?
E como tu escrevias, a crise é também uma oportunidade para repensar a vida. Com o descrédito da política como pano de fundo, mas também com a banalidade da vida que nos rodeia, é preciso reinventar uma nova democracia, uma nova maneira de estar com os outros; mas também é preciso convencer-se de que cada um de nós tem um lugar na construção do mundo novo, ou como dizias, “cada um de nós é tocado para exercer o seu modo de estar no mundo de forma exemplar… Intervir no pequeno mundo, pode fazer a diferença positivamente no todo.”  Assim o fez S. Bento. Assim nos indica o Evangelho deste domingo (1), onde perante a falta de comida Jesus disse aos apóstolos: “Dai-lhes vós de comer”. Acabou por mostrar que o milagre que está ao seu e ao nosso alcance é o milagre da partilha. O escândalo do nosso mundo não está na falta de meios para viver, mas na ausência de motivação para partilhar, sabendo que o pouco quando repartido sacia mais do que o muito retido.
Com amizade.

Valentim

1) Perante uma multidão que o escutara até tarde, Jesus solicitou aos discípulos que repartissem os seus “cinco pães e dois peixes” por mais de cinco mil pessoas… ver Mateus 14, 13-21.