domingo, 21 de fevereiro de 2016

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

renovarmo-nos interiormente exige fazer caminho… Cândida Bessa propõe-nos ESCUTAR A VIDA pela diferença do pequeno gesto, e que pode ser APENAS “cantar a Vida em Janeiro”.
Fraternalmente,

grão de mostarda


O HOMEM NOVO


UM NOVO ANO COMEÇOU e muito há a fazer para que nos renovemos interiormente. E a atenção aos outros no nosso dia-a-dia faz toda a diferença…

ESTA MANHÃ quando caminhava por uma rua do Porto, vi uma senhora idosa com muita dificuldade em movimentar-se para sair do carro, o filho quase a arrastava e nada conseguia. Aproximei-me e perguntei se podia ajudar. O filho aceitou e fui ajudá-lo, até a senhora entrar dentro de casa pelo passo normal. Nesse dia, da parte da tarde no IPO do Porto, onde faço parte  dum coro em que todos os elementos passaram por problemas oncológicos. Fomos à entrada do IPO cantar as janeiras, ou melhor cantar a Vida em Janeiro. 

A dor de quem espera por uma consulta, a visita a um amigo ou familiar, foi alterada pela nossa presença. Os rostos sorriram, as palmas ouviram-se, e alguns cantaram...

Pequenos gestos que constroem a diferença: é urgente ser sentinela e pôr-se a caminho.

E assim, sugiro orar com a Vida. O “Ora vê” do padre Rui Santiago dá-nos uma ajuda (*).

Cândida Bessa


Desculpa, Senhor, quando se nos congelam os passos.
O medo é terrível, faz de nós estátuas.
Garante-nos esse aldrabão! que se ficarmos quietos
tudo correrá bem, ficaremos imunes aos sofrimentos
e às desgraças daqueles que arriscam.
É mentira! Não há sofrimento maior do que ver
a própria existência inutilizada,
nem desgraça tão inteira
como nunca ter sentido a graça de ultrapassar-se

Ensinaram-nos a não darmos passos maiores que as pernas,
e a maneira de nos convencermos disto
foi esconderem-nos uma verdade muito importante:
quando damos passos maiores que as pernas, elas crescem!
O Homem Novo, aquele à medida do Teu Filho Jesus,
constrói-se no exagero e na ousadia de ser Humano...
Verdadeiramente Humano, exageradamente Humano...
Como aquele Jesus, Homem como nós. Bom como Tu!
A Humanidade levada ao exagero
é uma vida toda revestida de Bondade.

Quando nos dá para duvidar e retesar o corpo,
é quando se nos congelam os passos. E ficamos assim,
desgraçados, para sempre
a olhar para o topo das montanhas
sem nos darmos  a hipótese de saborear
o que está lá do outro lado.
A seguir vai o coração... que seca, calcifica,
abranda até se sepultar dentro de nós mesmos.
Bem Te gritavam os Profetas:
"Tira do nosso peito o coração de pedra,
e dá-nos um coração de carne!"
Estala-nos o verniz, Senhor, descasca-nos, por favor,
até nos retirares de dentro da casca de Homem Velho
que muitas vezes nos envolve, e que é feita para a insensibilidade.
Dá-nos de novo a energia da vida, da Confiança,
Da Esperança, das mãos dadas
que tornam possíveis quase todos os milagres.
Enche-nos da Tua sensibilidade da bondade de Jesus,
ainda que aleije, ainda que isso nos exponha mais que tudo,
ainda que nos leve a vida.
Porque, afinal, é quando nos expomos ao exagero do Amor
e à loucura da Esperança que nos pomos a jeito
para levar com o Milagre da Vida em cheio na cara!

domingo, 7 de fevereiro de 2016

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

quantos refugiados habitam na nossa cidade ou no nosso prédio? Não nos referimos aos que agora se embrenham pelas fronteiras da Europa. Falamos dos sós, dos que tiveram sempre de se refugiar, aqui ou ali, desta ou daquela maneira, para sobreviverem.

O ESCUTAR A VIDA desta semana conduz-nos àquela interrogação. O internamento do Pedro (*) numa comunidade terapêutica para desabituação de drogas e álcool, actualiza nos nossos corações as palavras do irmão Roger: “Hoje, em dia, a família humana tem uma grande necessidade de entrar num tempo de confiança…” Estaremos dispostos, como propõe o fundador da comunidade de Taizé, a viver como “servos da confiança” no nosso quotidiano? 

(*) nome fitício





OS REFUGIADOS DO NOSSO QUOTIDIANO





EM CADA CONVERSA sempre haveria de referir: “Eu sou um só!”. Não o dizia como quem se lamenta ou como quem mendiga piedade, mas com uma tristeza imensa que se lhe desprendia do falar grave, quase pronunciado em surdina. Com a tristeza funda de quem perdera, numa imensa noite, todas as referências vitais…

E na verdade, perdera. Do pai afirma sempre: “Foi o palhaço mais famoso…”, mas não o conheceu! “Morreu muito novo”. Da mãe, de quem se recorda vagamente e da relação entre ambos conta versões diversas, diz: “Era conhecida em todos os circos: andava de mota no poço da morte”. Estas referências ao pai e à mãe revelam somente um tom de uma avaliação no superlativo, porque, na convivência, percebe-se como tudo foi caótico na vida deste homem que na idade de 40 anos nem sabe ler.

Nasceu nos arredores de Lisboa, na Amadora. E só sabe porque é o Bilhete de Identidade que o informa. Como chegou a Braga? Não sabe. Umas vezes - como há oito dias, na entrevista de internamento na comunidade de desintoxicação de álcool - conta que foi mordido por um rato, num circo em Lisboa, e que a mãe o mandou “para junto de uma tia, que vivia em Braga, para o tratar”. Noutras alturas, diz que veio com a mãe e a irmã, quando tinha 8 ou 9 anos. E depois ficaram… Na verdade, como foi?

AGORA TEVE A SUA PRIMEIRA FESTA DE ANOS… Um dia depois de ter chegado à comunidade terapêutica. “Fizeram-me um bolo e tudo…”, dizia ontem, ao telefone - o primeiro contacto com o exterior, após o internamento. Para trás, ficaram um sem-número de caminhos preenchidos de esquinas, como a história da irmã que, além de lhe cobrar dinheiro pelo quarto onde dormia, fez com uma operadora de comunicações um contracto em nome dele. E que quando teve conhecimento que alguém o estava a ajudar a deslindar mais esta esquina da vida, colocou-lhe os sacos com a roupa na rua. E com eles vinham também os seus desenhos (na maioria rostos índios, nos quais ressalta a harmonia das cores), aos quais se dedicava entre os biscates numa oficina onde fazia junções para os tubos das botijas de gaz e a ajuda ao senhor do café - na verdade, uma taberna onde servem refeições, e à tarde se reúnem reformados e desempregados para beber um tinto e jogar cartas… Quando foi despedir-se deles, disseram-lhe: Porta-te bem, oh Pinóquio! Depois quando vieres já podes beber connosco.”

Pinóquio? Sim, diz ele na entrevista na comunidade terapêutica. “Era o meu nome no circo”. E que fazia, perguntam-lhe. “De palhaço”, responde. Então logo o convidam para alegrar festas na comunidade. Que não: “Agora já não tenho vontade disso…” “Porquê?”, insistem. “Porque não tenho alegria. Sou um homem só!”, diz, na sua voz quase silenciosa…
Ontem já não falou assim: “Gostaram dos meus desenhos…”.


Foto: Ricardo Cruz (www.porto24.pt)
 

grão de mostarda