segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

Jean Onimus, no seu livro “Jesús en directo” (*), quando no final reflecte sobre o facto de a mensagem de Jesus “continuar a ser actualmente válida” – apesar de “tão rapidamente absorvida pelos sistemas e pelas doutrinas” –, anota: “(…) o que resiste ao tempo não são as ideias (que envelhecem e morrem diante de um novo contexto), mas sim os valores, e em particular esse ideal de amor que se revela ‘humano’”.

Na reflexão ESCUTAR A VIDA, Ricardo Brochado traz-nos dois testemunhos de amor nos quais, se consentimos no coração que o mais humanamente importante é o Amor, revemos “riquezas espirituais que se deveriam valorizar”.

Fraternalmente,

grão de mostarda


(*) Editorial Sal Terrae, Espanha, 2000




SÓ O AMOR É RELAMENTE IMPORTANTE…


As orgânicas familiares tradicionais estão cada vez mais ultrapassadas. Numa sociedade em que todos os valores se vão modificando muito rapidamente, em que cada vez mais a produção de riqueza parece ser o valor mais importante e nos vai cegando para a real importância do que é importante, em que pobreza material se ignora, mesmo estando debaixo dos nossos olhos, há riquezas espirituais que se deviam valorizar. Fruto de uma cegueira de séculos e de um paradigma parolo e mesquinho, a homofobia vai preenchendo as nossas mentes e obstrui a visão para um valor que, esse sim, é realmente importante: o Amor.

Nestes meses de época alta de turismo (e dizem muitos ser o futuro de Portugal) tive o privilégio de conhecer pessoas fantásticas dos dois lados da “barricada” hetero/homossexual, que me deram lições de vida pela forma como observam e vivem a vida.

Um casal de senhoras, uma médica e uma militar, sem preconceitos de forma alguma, mostraram-me o mesmo tipo de relação que os casais heterossexuais me mostram todos os dias com as mesmas idiossincrasias, as mesmas relações, as mesmas discussões, os mesmos gestos de carinho. São americanas, e uma delas, de nome de família Amarante, insistia que queria visitar a terra no Norte sua homónima. Em tom de brincadeira dizia que queria visitar o seu “reino”. O problema é que tinham poucas horas para o fazer. 

Num acto de puro altruísmo, a sua companheira comprou os bilhetes de autocarro para fazerem uma viagem de duas horas, ida e volta, e passarem em Amarante 25 minutos. Tudo para que conhecessem o “reino”.
Um outro casal, também dos Estados Unidos, e desta feita de homens, contratou-me com uma única exigência, que fizesse um percurso à medida para a mãe de um deles, que tinha problemas de mobilidade e 83 anos. Respondi-lhes que só faria a visita ao Porto se fosse tudo criado para a senhora se sentir confortável e feliz.

Ora, seria natural pensar que esta senhora tivesse algum tipo de preconceito em relação à opção sexual do seu filho, mas enganem-se, tratava os dois por filho e tinha exactamente o mesmo tipo de relação com os dois. 

Ao fim do dia, estavam os três felizes, e notava-se a alquimia do Amor entre estas três pessoas, que, uma vez ultrapassadas as mesquinhices impostas pela sociedade, se entregavam a uma experiência de compreensão e dádiva.

Cada vez mais sou crente de que dar cem por cento nos vai devolver um por cento, mas este valor é de qualidade, não de quantidade.

Ricardo Brochado

domingo, 12 de outubro de 2014

ESCUTAR O AMOR



No centro do nosso ser há um pequeníssimo ponto que não está tocado pelo pecado nem pelo engano, um ponto de pura verdade, um ponto ou uma centelha que pertence inteiramente a Deus (…). É como um puro diamante, resplandecendo com a luz invisível do céu. Está em todos nós, e se a pudéssemos ver, veríamos esses milhares de milhões de pontos de luz reunindo-se com o aspecto e esplendor de um sol que dissiparia por completo todas as trevas e a crueldade da vida…”
Thomas Merton (1915-1968), monge cisterciense 



ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

“Quando fazemos a experiência da solidariedade com os que estão muito próximos de nós ou com os que estão muito longe, a experiência de pertencermos uns aos outros, de dependermos uns dos outros, então a nossa vida tem um sentido.” Estas palavras do irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, ganham uma dimensão mais profunda quando conhecemos exemplos de vidas entregues, não apenas à solidariedade enquanto gesto pontual de ajuda, mas como projecto de vida assumido na mudança de mentalidades e modos de relacionamento entre as sociedades.

Janet Maro fez esta aposta: dedicar-se a contrariar interesses financeiros para tornar possível uma Terra mais humanizada. A determinação desta tanzaniana – uma nossa “vizinha” de mais longe – leva-nos a ultrapassar as desconfianças e a acreditar na bondade do coração humano.

Uma nota necessária: de Janet Maro tivemos conhecimento através da edição portuguesa deste mês da National Geographic e da revista espanhola digital Mayhem (http://www.mayhemrevista.com).


Fraternalmente,
grão de mostarda


Janet Maro: cuidadora da terra e da Humanidade


O seu nome não circula pelos centros de conferência das multinacionais da agroindústria, nem é escutado nos gabinetes dos países ricos, quando se debate o problema da alimentação ou se tecem discursos sobre a fome e os modelos de alimentação, a nível mundial…

Janet Maro, uma jovem tanzaniana agrónoma, vive precisamente empenhada na transformação da lógica que, políticos e empresários, pretendem impor nos modelos de produção agrícola, com o argumento de uma necessidade urgente de acabar com a escassez de alimentos.

Em 2012, perante a falta de comida pela ausência de recursos em continentes como a Ásia e a África subsariana, em particular, os países membros do G8 colocaram em prática um programa para dez anos. Designado Nova Aliança para a Segurança Alimentar e a Nutrição, prevê retirar da pobreza 50 milhões de pessoas através do investimento privado em agricultura nos países chamados subdesenvolvidos, entre os quais a Tanzânia.

Quando em 2009 terminava o curso, Janet Maro juntou-se a uma iniciativa única: criar uma organização sem fins lucrativos com os pequenos agricultores de Mogoro, a pouco mais de 100 quilómetros de Dar-es-Salam. E assim nasceu a Agricultura Sustentável da Tanzânia (SAT) – Sustainable Agriculture Tanzania (ver: http://kilimo.org/WordPress) – conseguindo impedir que os interesses financeiros tomassem conta de um conjunto de práticas tradicionais da agricultura: produção diversificada de vegetais para não saturar os solos, uso de compostagem como único fertilizante, em vez de adubos sintéticos, e aplicação de métodos naturais para a impedir o avanço de pragas, através da combinação de plantas capazes de substituírem os pesticidas… Paralelamente foram criados um centro de formação para pequenos agricultores tanzanianos e de países vizinhos e duas lojas de venda dos produtos.

Janet Maro não vive “encurralada” no gabinete da SAT. Quotidianamente está presente no campo com os agricultores para experimentar, melhorar e estudar métodos naturais de preservação de semente e de colheitas cada vez mais corretas, em termos biológicos. E é assim que desde há cinco anos já foi possível aos agricultores incorporados na SAT venderem as suas colheitas em mercados locais, matricular os filhos na escola e não se endividarem com a compra de fertilizantes e pesticidas.

Sobre o projecto do G8, Janet Maro denuncia que ele promove uma agricultura baseada na utilização de sementes hibridas e de fertilizantes sintéticos. “Acreditamos na independência dos agricultores para decidir sobre o método que pretendem utilizar…”, refere quando aponta as implicações ambientais que terão todos os processos que a multinacionais da agroindústria estão a desenvolver: “Teremos plantas que florescem, mas o solo ficará arruinado e ao fim de algum tempo, já exausto, deixará de produzir.” Assim, assegura, a longo prazo este plano “não é sustentável.”

E como sabe que os dinheiros dos países ricos destinados a projectos de agricultura não chegam aos pequenos produtores – “em África tudo funciona de cima para baixo, começando pelos países ricos dando dinheiro aos governos; logo esse dinheiro é retido no Ministério da Agricultura, nos funcionários menores, e só depois alguma coisa chega, quando chega, aos que produzem a comida” – Janet Maro propõe que o caminho certo, diante do aumento de população previsto (a ONU assinala que até 2050 haverá mais dois mil milhões de seres humanos), a produção de mais comida só poderá surgir através de iniciativas respeitosas pelo ambiente, através de uma agricultura sustentável: “A única que cuida do solo, da saúde e é produtiva.”

“Na história do mundo, por vezes houve algumas pessoas que, pela sua fidelidade e pela sua humilde perseverança, influenciaram acontecimentos de forma duradoura.” Janet Maro desconhece, certamente, estas palavras do irmão Aloïs, mas elas são um retrato do amável projecto de vida desta agrónoma.




Foto: SAT

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

a serenidade do nosso interior nasce das decisões que, experiência após experiência, vamos tomando ao longo dos dias das nossas vidas… E uma das mais importantes decisões é o uso que fazemos do tempo, do momento presente. Raras vezes olhamos e vivemos o agora como um encontro de placidez com o “acontecimento” que nos é dado viver.

Paula Guerreiro transporta-nos, na reflexão de ESCUTARA VIDA, para a experiência que fez de “um tempo que vai ao encontro do Amor”. Ou seja, o tempo que se nos entrega, devolvendo-nos serenidade de coração (ver ANEXO).

Fraternalmente,

grão de mostarda

- pedimos desculpa por só hoje ser possível enviar esta reflexão, que vos deveria ter chegado no passado dia 4.


A importância da lentidão

Um apontamento no jornal, de sábado passado, dava nota de um evento: "A Festa é aqui." "A Festa é aqui" iria desenrolar-se numa das ruas principais do Porto. Resolvemos ir, eu e a minha mãe de 83 anos. Uma delícia…

Havia animação de rua, palhaços em monociclos, dj's nas varandas e bandas de jazz. Um rasto de pequenos vasos honrava o nome desta rua pedonal, Rua das Flores. Uma jovem encantava com o seu realejo. Mais à frente um livreiro alfarrabista dava à manivela uma grafonola de 1930, demonstrando-nos como funcionava. Estávamos na presença de instrumentos musicais próprios de uma cultura que remonta à primeira metade do Séc. XX.

A minha mãe deliciava-se a observar, a ver. O olhar despertava-lhe os sentidos e apelava à sua memória, uma memória cheia de recordações, de estórias - houve uma vez... e começava a contar...

Parávamos junto às vitrinas das lojas. Nos seus vidros, e associados aos produtos que comercializavam, havia desenhos bastante coloridos acompanhados de um poema ou de uma rima, ou ainda, uma adivinha onde nos detínhamos a descobrir a resposta.

Passeávamos ao nosso ritmo, um ritmo que pertence ao tempo, mas pouco tolerável no nosso Tempo. A propósito, lembrei-me de um livro do Luís Sepúlveda "História de um caracol que descobriu a importância da lentidão" (*). Sim, estávamos a saborear e a absorver porque estávamos sem pressa, atentas ao apelo dos sentidos.

Foi maravilhoso ver a Rua das Flores com tanta vida… Mas delicioso foi partilhar dessa vida, com as experiências, as estórias da minha mãe e apreciar a sabedoria deste tempo que passamos juntas. Um tempo que vai ao encontro do Amor, pois o Amor é parcimonioso.




(*) Porto Editora, Abril 2014

Paula Guerreiro

Ilustração de Paulo Galindro, no livro citado de Luís Sepúlveda