sábado, 3 de setembro de 2011

ESCUTAR A VIDA


Caríssimas e caríssimos,
Na reflexão ESCUTAR A VIDA desta semana, Paulo França faz eco de muitas das discriminações feitas à comunidade imigrante… Dos contrastes de comportamentos e das dores que os comportamentos xenófobos provocam. Antes, leva-nos ao tempo em que Portugal era um país de emigrantes (não deixando de ainda de o ser), gente em busca de “espaços de sobrevivência”, como acontece a todo o ser humano que sai da sua terra.

Com estima fraterna,
grão de mostarda
Discriminações I I

Xenofobia/Racismo/Multiculturalismo

Ao longo da minha vida, tenho acompanhado crianças, adolescentes, jovens e adultos lusos e estrangeiros de diversas origens, sobretudo no ensino público e privado e nos serviços que, em Portugal, têm tido como áreas de intervenção o acolhimento e integração das comunidades migrantes, assim como a gestão pedagógica da educação multicultural no sistema educativo português.
  A dificuldade que as pessoas têm em lidar com imigrantes de etnias e culturas diferentes é uma realidade muito portuguesa. Sendo a comunidade brasileira a maior comunidade imigrante em Portugal, não deixa de ser curioso o facto de haver pouca facilidade em olharmos os brasileiros como falantes da mesma língua que é a nossa. A identidade de um povo define-se também pela sua língua oficial. Não é fácil perceber por que razão o povo português denomina a língua oficial do Brasil por “brasileiro”, tendo em conta que o cidadão comum brasileiro assume naturalmente, na sua identidade, o português como a sua língua materna. No Reino Unido, lugar onde vivi uma curta experiência de migrante durante seis meses, a música oriunda dos EUA é categorizada como música inglesa. Ali assume-se que a música originária dos países falantes de inglês é música inglesa. Entre nós, nas lojas que vendem audiovisuais de música, a música feita no Brasil, ou noutros países de língua oficial portuguesa, é subcategorizada como música brasileira, não se assumindo o português no seu todo, de forma global nas suas diversas variantes. Isto significa que os portugueses não integram na sua identidade, como povo, o Brasil como um país falante de língua portuguesa, mesmo sendo até o país com maior número de falantes de português no Mundo, e que muito tem feito pela difusão da nossa língua, não só através da ficção audiovisual, mas também, e sobretudo, pela Bossa Nova que catapultou definitivamente o português para o mundo do Jazz e Swing anglo-saxónicos, permitindo até a criação de retroversões para inglês de muita poesia escrita e cantada originalmente em português.
    Portugal sempre foi um país de emigrantes. Exportar populações foi uma necessidade dos próprios descobrimentos e consequente colonização dos diversos territórios que foram parte do império português, servindo as pessoas não só de mão-de-obra para o desenvolvimento económico e comercial, mas também para a reprodução, com vista ao aumento da população, em termos demográficos. Ao longo dos séculos, a emigração manteve-se, mesmo após a independência do Brasil e a conquista da democracia em 1974. Nos nossos dias, por razões raras vezes honrosas e boas, muitos portugueses continuam a sair de Portugal, não só para algumas ex-colónias, mas sobretudo para destinos historicamente preferenciais como a França, Alemanha, Suíça, Espanha e Reino Unido, não sendo de esquecer alguns países da América do Sul e da América do Norte.
   Sobremaneira a partir da década de 90 do século passado, Portugal tem registado o acolhimento de imigrantes de diversas origens em busca de uma vida melhor, de trabalho e de dignidade, tal como nós portugueses fizemos e continuamos a fazer. A maior comunidade imigrante actualmente é a brasileira. E a discriminação começa pela não assunção, por parte dos portugueses, da língua oficial do Brasil como uma variante do português europeu, continuando na imagem social que os portugueses têm, enquanto sociedade de acolhimento. Ocorrem comentários: os imigrantes vêm tirar trabalho aos portugueses que cá vivem, que os brasileiros vêm todos das favelas, que são todos falsos, vigaristas e ligados à “indústria sexual”. Quero aqui assumir que sou filho de pais que foram imigrantes no Brasil, irmão de dois irmãos que nasceram no Brasil, bisneto de um tio-avô que viveu e morreu no Brasil e primo em segundo grau de brasileiros.
    Eu próprio tive uma curta experiência de imigrante. Senti, muitas vezes, vergonha de me juntar a outros portugueses imigrantes, devido ao seu comportamento social com hábitos de alcoolismo e consequentes desacatos e provocação pública. Recordo-me que numa tarde de Outono, quando circulava numa avenida central da cidade onde vivia, fui interceptado por uma jovem britânica que, juntamente com outras, fazia inquéritos de rua à população que por ali circulava. A jovem perguntou-me então a minha nacionalidade, quando pronunciei que era português, a mesma jovem virou-me as costas. Mais tarde percebi que muita gente daquela cidade tinha uma imagem pouco abonatória dos portugueses, associando-os aos comportamentos referidos e à burla. Infelizmente, essa imagem social tinha algum fundamento. O menos bom disto de tudo é a generalização que me incluiu somente por ser também português.
   Em relação às outras comunidades imigrantes, a segunda mais representativa é a ucraniana. Pela fisionomia e comportamento social, integrou-se facilmente. Até porque se trata de gente que veio de regimes autoritários e inflexíveis. Este facto resultou que esta gente tenha aceitado facilmente as exigências dos patrões em Portugal.
   A comunidade cabo-verdiana tornou-se na terceira comunidade imigrante mais representativa entre nós. Geograficamente mais próxima de nós, também com grandes afinidades culturais connosco. Todavia, coincide, nesta comunidade, muitos casos de exclusão social que desembocaram em comportamentos dissociais de crimes e violência social suburbana. Esta comunidade, há 10 atrás, queixava-se, junto dos serviços de acolhimento e imigração, ter sido esquecida e maltratada pelo Estado português. Seguem-se os angolanos, moçambicanos, guineenses. Menos representativos entre nós, se comparados com os de Cabo Verde.
Depois vêm os chineses, muito associados à restauração e comércio. Pouco sociáveis com a sociedade de acolhimento, raramente se esforçam em falar português.
E, por último, temos comunidades de origem indiana, paquistanesa, filipina, entre outros. Em regra, estas comunidades também não socializam com a sociedade de acolhimento, trabalham nas obras, no comércio, serviços e restauração.
 Pela experiência que tenho, do “vox populi”, muitos professores, por exemplo, que trabalham na Grande Lisboa, revelam ser racistas de forma latente, queixando-se do cheiro do suor dos africanos, da falta de higiene. Na Primavera de 2011, conheci um jovem de origem africana que sofria imenso por a família da namorada não aceitar que ela tivesse um namorado “preto”. Estamos no séc. XXI. Estas coisas ainda sucedem, mais do que possamos pensar. No nosso sistema educativo continua a fazer muita falta a educação multicultural, a integração da diversidade étnica e cultural nas abordagens pedagógicas, à semelhança do que aconteceu nos EUA e noutros países que entenderam ser os imigrantes parte integrante do seu desenvolvimento. Nas escolas portuguesas continuam a haver professores que falam em “catinga” e “pretos” e associam as mães brasileiras, encarregadas de educação dos nossos alunos, à prostituição. Persiste, portanto, uma grande dificuldade em lidar com a diferença e em ver na diversidade uma riqueza social, cultural e humana. Somos ainda etnocêntricos, pouco abertos aos outros. Lembro-me que há dez anos atrás, morava no Rossio, em Lisboa. No meu prédio, habitavam imigrantes de origem asiática e sul-americana. Recordo-me que, no início, aquela gente revelava um comportamento social pouco simpático, devido ao facto de estarem em choque cultural com a sociedade de acolhimento. Ajudou-me, ao tempo, o facto de estar a estudar educação multicultural na faculdade e de trabalhar no Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. Não se pode entender educação multicultural sem perceber primeiro a origem dos fluxos imigratórios que compõem as populações-alvo. Sei que há quem considere um timing de três anos para os imigrantes deixarem o choque cultural e mudarem o seu comportamento de forma natural. Foi exactamente o que sucedeu naquele prédio. Somos também esquecidos, porque nos esquecemos que muitas gerações de emigrantes portugueses sofreram e sofrem ainda hoje a exploração, discriminação e a humilhação no trabalho lá fora. Talvez andemos adormecidos. De facto, somos ainda, e muito, um país de emigrantes. A melhoria das condições de vida do Portugal democrático não se registou tão integradora do seu povo como era expectável, nem sequer no contexto político da União Europeia. Há poucos anos, já tínhamos um êxodo de portugueses para o estrangeiro ao nível do tempo do Estado Novo.
  Vamos parar para pensar e olhar para o chão que pisamos e tentar perceber quem asfalta as nossas estradas, olhar para cima e perceber quem constrói as nossas pontes (muitas vezes com o sacrifício da própria vida em graves acidentes de trabalho), viadutos, prédios, quem nos serve melhor à mesa, quem limpa os ministérios, os bancos, os hospitais, etc. Porém, ninguém gosta de ser discriminado. Continuamos a não amar os outros como a nós mesmos e a não conseguir olhar os asiáticos, os sul-americanos, os africanos como seres humanos e centramo-nos na sua etnia, língua, país, religião. No meu dia-a-dia, continuo a defender esta gente porque sei que a tendência natural do ser humano, em qualquer parte do globo, é entender-se, independentemente da língua, da etnia, da nacionalidade, do género, das opções políticas e da orientação sexual. Além disso, estou convencido que o nosso país tem evoluído muito graças à vinda e permanência dos imigrantes, não só económica, mas também social, cultural e humanamente. Sabe-se que o futuro económico e demográfico da Europa depende muito desta gente, porque a população europeia envelheceu e, como não nascem crianças em número suficiente, falta população em número suficiente no Velho Continente.

Paulo França

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