domingo, 7 de junho de 2015

CARTA EM BUSCA 2015



Carta em busca 2015

DA BUSCA DA PAZ INTERIOR
A UMA AMABILIDADE COMPROMETIDA






Será possível a Humanidade encontrar um “tempo de paz”, se no íntimo do nosso coração não vivermos pacificados?

O tempo presente afigura-se incapaz de fomentar confiança e bondade de coração no ser humano. O temor, o individualismo e a ambição dominam todas as relações humanas, a nível pessoal e também estrutural, no interior das sociedades. Vivemos numa época que parece contrária a uma reconciliação interior (1). 

A busca da paz interior exige-nos um olhar ao mais profundo de nós mesmos… Mas este olhar tem de ser construído “sem máscaras”, sugere-nos Thomas Merton, apontando que só assim será possível desvelar que aquilo que “nos aquece é o fogo, não o fumo” (2). Ou seja, um olhar que nos solicita uma escuta da nossa própria essência; uma escuta que exige cavar fundo o que nos habita, tantas vezes distorcido pelo fumo que nos envolve. 

Este desafio, condição insubstituível para uma mudança de coração, não nos requere recriminações ou juízos de valor de qualquer ordem sobre a nossa vida. Trata-se de nos conhecermos, de nos desnudarmos, aceitando o que somos e como o somos. Porque é na escuta que o olhar se vai treinando a reconhecer as nossas raízes, até atingir a compreensão de que somos fragilidade e nela vivemos (3).

Experimentada na fidelidade a nós próprios, a busca da paz interior sempre nos remeterá ao “Absoluto Invisível” que nos habita, sejam quais forem os caminhos que cada uma e cada um decidir calcorrear. No fundo, trata-se de uma inquietude que “desperta o nosso coração” e nos torna “vigilantes para renunciarmos a tudo o que nos possa alienar”, não permitindo “que nos instalemos na mediocridade” (4). E esta inquietude nos orientará inevitavelmente a um processo de mudança; não de conversão a uma doutrina ou ideologia, mas ao encontro do fogo que nos aquece: o nosso verdadeiro SER... (5).

Esta inquietude, pouco a pouco, suscitará no mais profundo do nosso SER uma atenção e abertura…. Ou seja, uma interpelação que nos conduz o olhar interior para o exterior, para a vida que acontece e da qual somos também acontecimento.

A partir deste encontro com o nosso coração jamais nos será possível permanecer imobilizados, indiferentes diante da realidade. Começamos a viver conscientes “de que o que pode paralisar o ser humano é o cepticismo ou o desânimo” (6), enquanto decisão primordial para a mudança interior, como o monge cisterciense Carlos Maria Antunes assinala: “Quando vivemos a partir do coração surge a novidade, porque a atenção própria do coração remete-nos constantemente para o presente. E este é sempre novo, porque é um fluir constante” (7).

É a partir do olhar do coração que nos tornamos “artesãos de paz, mulheres e homens de compaixão” (8). E assim descobriremos a beleza profunda de cada ser humano, assumindo decisões de amabilidade comprometida, das quais hão-de germinar novos caminhos de confiança. De uma confiança que não se transforma em aventura sem futuro, mas sim em decisões capazes de transpor os desertos da indiferença, a escassez de atitudes humanizadoras…

Não se trata de entregar a nossa liberdade a um qualquer “destino”, mas sim de ensinar os nossos corações que o caminho individualista como itinerário de felicidade é uma ilusão. Somente de uma amabilidade comprometida poderá nascer um “tempo de paz”, de uma genuína hospitalidade e de uma gratuidade total.

E, então, nada mais nos restará senão o Amor…

comunidade grão de mostarda

(*) Viktor Frankl, “El hombre en busca de sentido” (Herder, Espanha, 2007) 
Neurologista e psiquiatra na Universidade de Viena, Viktor Frankl (1905-1997) foi prisioneiro do regime nazi 

(1) “O homem que não tem paz consigo mesmo necessariamente projeta a sua luta interior na sociedade onde vive, difundindo o contágio do conflito por todos que o rodeiam,” recorda-nos Thomas Merton (1915-1968). Todavia, o monge cisterciense que não se deixou prender por um olhar superficial sobre a Humanidade, confiadamente sublinhou: “Por mais que possa parecer que o homem e o seu mundo estão em ruínas, e ainda quando possa ser assustador o desespero do homem, enquanto este continue a ser homem, a sua própria humanidade continuará a afirmar-lhe que a vida tem sentido.” “Los hombres no son islas”, Sudamericana Editorial, Buenos Aires, 2000 (versão transcrita: “Escritos Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006)

(2) “Escritos Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006

(3) Assumir a nossa fragilidade não pode ser entendido como um infortúnio inevitável, mas sim de que, naturalmente, a condição humana não nos possibilita uma permanente resposta consciente e ética em todas as circunstâncias da vida.

(4) Da reflexão do irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, na oração da noite de 5 de Julho de 2012

(5) Thomas Merton comenta que o processo de mudança de coração não solicita ser uma procura da perfeição, mas “uma apreciação intuitiva da própria realidade interior”, do nosso verdadeiro SER, enquanto percurso que nos possibilitará “aprender a viver como pessoa humana unificada.” “Escritos Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006
Neste processo de mudança de coração podemos sentir como necessidade vital sermos escutados. É muitas vezes necessário confrontarmos com alguém sentimentos negativos ou a imagem deformada de nós próprios. Quem já foi escutado com afecto e amabilidade reconhece o conforto interior que é podermos desvelar a bondade que habita os nossos corações. 

(6) Irmão Roger de Taizé, “Viver para amar – Palavras escolhidas”, Paulinas, 2010

(7) “Só o Pobre se faz Pão”, Paulinas, 2013

(8) Da reflexão do irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, na oração da noite de 14 Julho de 2011


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