quinta-feira, 20 de outubro de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS?

Caríssimas e caríssimos,

O Pe. Valentim Gonçalves recupera o essencial que Luísa Alvim deixou inscrito na sua última carta (1): “Falavas na tua carta da esperança, essa ‘disposição interior e atitude face à vida que sobrevive ao tempo e ao desmoronamento das certezas’”. E é por aqui ele retoma a reflexão que agora nos deixa nas mãos… e no coração.
Fazendo memória das circunstâncias em que foi fundada a congregação a que pertence, o Pe. Valentim remete-nos ao tempo presente – “Vivemos agora o desmoronamento de algumas certezas e de muitas seguranças que dávamos como adquiridas. De um momento para o outro tudo se torna incerto e inseguro…” –, colocando-nos diante da distância que vai entre as “medonhas pastas dos homens da ‘Troika’” e as pessoas da sua comunidade dos Terraços da Ponte (antiga Quinta do Mocho) que, “talvez não tendo um euro para o dia seguinte, ainda não perderam a perceção de que a vida é muito mais do que o dinheiro”. 

(1) A carta de Luísa Alvim foi publicada dia 17 de Setembro. Pedimos desculpa por só agora se publicar a resposta do Pe. Valentim, que vos deveria ter sido entregue no passado dia 1. Também à Luísa Alvim e ao Pe. Valentim Gonçalves solicitamos que sejam benevolentes com os “acidentes” do nosso computador, que pensamos estarem agora resolvidos. 

 Com estima fraterna,

grão de mostarda

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito – é também membro do Metanóia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.


Carta do Pe. Valentim Gonçalves para Luísa Alvim

Caríssima Luísa,

Falavas na tua carta da esperança, essa “disposição interior e atitude face à vida que sobrevive ao tempo e ao desmoronamento das certezas”. Pensei logo numa atitude que considero vital e que implica duas posições: por um lado aceitar a fragilidade e o fracasso pessoal como parte da bagagem que nos acompanha; por outro, não se deixar vencer por essa fragilidade, mas ter confiança em si mesmo, porque Alguém primeiro já confiou em nós apesar da nossa fraqueza; Alguém que nos conhece pelo nome, que “escreveu o nosso nome na palma da sua mão”, como diz Isaías; Alguém que só deseja para nós a vida em abundância.

O desmoronamento das certezas, quando assumido a esta luz, é libertador porque na lança na verdade. E a força da verdade não está no poder, mas na fragilidade. Penso na cruz, “loucura para os gregos, escândalo para os judeus, mas sabedoria e poder de Deus para os que são chamados”. Neste enquadramento procuro ver a desmoronamento de tantas coisas no dia-a-dia.

Partilho a experiência que há umas semanas vivi durante uma passagem pela Holanda e pela Alemanha. Estava na casa-mãe da minha Congregação. Ali ao lado ficava a igreja paroquial. Nesse sábado uma coisa curiosa aconteceu: o bispo da diocese veio à igreja para celebrar a ultima eucaristia: no fim, fechou a igreja e com a pequena comunidade acompanhou a procissão de velas, trasladando o Santíssimo para a capela do convento ao lado. Por quê? Porque os fiéis eram tão poucos e os encargos de manutenção tão elevados que foi essa a solução encontrada. Lá fica o edifício à espera de um destino: Um museu? Uma sala de reuniões? Vendida para o culto de outra religião? Nada disso seria novidade.

Ali na casa-mãe a mesma reflexão me ocupava. Foi aí, numa modesta pensão/taberna, que um homem inquieto e sonhador – hoje reconhecido oficialmente como santo – iniciou uma obra que, a muitos títulos era contraindicada. Dizia a propósito um bispo: “Quando tudo está a desmoronar-se, este (Arnaldo Janssen) quer fundar um seminário das missões; ou é um santo ou um louco”. Tinha razão no que afirmava. Na sua terra a política de Bismark – a Kulturkampf – impedia a criação de qualquer casa religiosa. Por isso ele avançou para lá da fronteira e aí começou numa extrema pobreza; poucos anos depois já a comunidade dos seus irmãos se espalhava pelos vários continentes. Mais uma vez a força da fraqueza. Hoje, aquele espaço, que então arrebentava de dinamismo, encontra-se largamente despovoado e longe da pujança de outrora. Todavia a seiva emanada dali torna viçosa e dinâmica a presença dos irmãos noutros continentes. Acredito naquela força que se afirma na nossa fragilidade.

Vivemos agora o desmoronamento de algumas certezas e de muitas seguranças que dávamos como adquiridas. De um momento para o outro tudo se torna incerto e inseguro. Vivemos a crise financeira, fruto de um endeusamento das coisas e nomeadamente do dinheiro, deixando a pessoa na posição de mero objecto descartável. Li nestes dias uma curiosa expressão do Fr. Bento Domingues no prefácio do livro “Falidos” em que ele, a propósito do momento, fala da denúncia das “nossas cumplicidades infantis com a pornografia financeira”.

Concluo retomando a tal experiência: regressado desses países, onde tudo está bem organizado, garantido, num ambiente de muita água, muita floresta, céu geralmente encoberto e rostos das pessoas a condizer, encontrei dois dias depois o povo da minha comunidade de Terraços da Ponte a celebrar a festa da Senhora da Nazaré, ao ar livre, num ambiente cheio de luz e, o que para mim é mais revelador, um povo a viver um dia inteiro de música, de dança, de sorrisos maiores do que aquelas medonhas pastas dos homens da “Troika”. E pus-me a pensar na força tremenda que Deus deu a cada pessoa, como àquelas que, talvez não tendo um euro para o dia seguinte, ainda não perderam a perceção de que a vida é muito mais do que o dinheiro. 

Até sempre!

Valentim

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