Caríssimas e caríssimos,
Por vezes, interrogamo-nos: como poderemos ser sinais de esperança, num mundo tomado pela indiferença e pela solidão? Por exemplo, proporcionar um espaço de escuta a um grupo de pessoas a viverem o problema da dependência do álcool pode tornar-se num “tempo de esperança”…
Na reflexão desta semana de Escutar a vida, partilhamos convosco um dos momentos vividos pelo grão de mostarda/comunidade fraterna de reconciliação na comunhão com a população desta terra.
Com estima fraterna,
grão de mostarda
Mudar de vida
“Eu sei que vou conseguir; eu vou conseguir mudar a minha vida…”. As palavras saíam-lhe emocionadas, mas ditas com energia, com uma vontade que lhe saltava do coração.
Era a primeira vez que esta mulher (chamemos-lhe “Isabel”) se encontrava com outras três pessoas, todas a viverem o problema da dependência do álcool – um homem que, tal como ela, ainda consome e uma mulher e um outro homem já em fase de recuperação, após tratamento. Ontem, uma tarde de sábado cheia de sol, estas quatro pessoas partilharam as “esquinas” das suas vidas. E enquanto a mulher já em recuperação – “estamos sempre em recuperação, mesmo depois do tratamento”, insiste ela – ia recordando, com alegria, os passos dados, com a ajuda do marido, para se “desembaraçar” do álcool, os olhos de “Isabel” voltavam a humedecer-se. A seu lado, o homem, de 38 anos, que ainda consome, ia disfarçando a sua inquietação. Primeiro, tentava aligeirar os efeitos do álcool, depois sugeria que “mantendo o consumo no mínimo, não haveria perigo…”. Mas a mulher e o homem já regressados do tratamento logo lançaram a mesma pergunta: “E o que é o consumir no mínimo?”…
Pouco a pouco, o diálogo foi revelando o que verdadeiramente se sentia no interior. Os corações abriam-se. E a solidariedade crescia – afinal não havia que ter vergonha de revelar as dores, as frustrações e as “noites escuras” que o vício provoca. Tanto a mulher como o homem já em recuperação não escondiam a mentira em que viveram com a própria família – Diz ela: “Eu cheguei a ter escondidos, num pinhal perto de casa, mais de dez litros de vinho, para que o meu marido não desconfiasse que eu bebia…”. Acabou por ter uma filha “nascida do álcool”, que sofre de deficiências múltiplas. Mas o que poderia ser um infortúnio tornou-se uma “felicidade”, segundo ela. O nascimento da filha, há seis anos, foi o que a levou a ir em busca do tratamento. Por isso mesmo, apesar de tantos problemas de saúde da filha que a obrigam a andar num autêntico corrupio para médicos, ela hoje assume: “Aquela menina – por ela dou a vida, se preciso for – foi a minha felicidade”. E sorri com a limpidez dos simples de coração. Depois de um pequeno silêncio, o homem também já regressado do tratamento revela: “Andei anos a mentir à minha mulher: escondia o dinheiro que recebia do subsídio de refeição para o gastar todo em vinho”. E a esta mentira sucediam-se outras que transformavam a vida de casal (com um filho menor) num “inferno”: “Tratávamo-nos mal, com palavrões, e o miúdo já não me respeitava!”. Hoje, no final de cada dia este homem faz com a mulher uma “revisão de vida”, como ele gosta de sublinhar mais que uma vez durante a conversa.
E enquanto o homem de 38 anos, que ainda consome, escuta estes testemunhos com um rosto de espanto, a “Isabel” agradece estes momentos: “É muito importante saber que é possível sair disto…”, diz, mostrando-se entusiasmada com a proximidade da consulta de avaliação (dia 11 de Outubro) para iniciar o processo de internamento. Depois volta a dizer: ”Eu sei que vou conseguir mudar de vida”.
É possível levar alguém a voltar a ter confiança na vida? Sim. Não são precisos muitos meios para que se abram caminhos a tantas pessoas magoadas pelas “esquinas” da vida. Na simplicidade, nascem possibilidades de um renascer… Por vezes, basta uma palavra para que alguém empreenda um novo caminho. Quando as portas se fecham a alguém que vive uma solidão interior, estamos a privar um ser humano de descobrir a felicidade. Não a felicidade de um qualquer euromilhões, mas a felicidade de um quotidiano construído de coisas simples, de gestos fraternos…
A felicidade das sociedades é possível surgir de pequeninos projectos de solidariedade humana; as feridas de incompreensões e injustiças podem ser saradas através de decisões de vida que levem os nossos corações a tornarem-se lugares de escuta. E aí começaremos todos a “mudar de vida”, a nossa e a do mundo.
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