CARTA EM BUSCA... 2013
 
 Caríssimas e caríssimos,
 
 A “Carta em busca…” tem sido anualmente enviada por ocasião da Páscoa, 
constituindo assim o tema de partilha para cada uma e cada um que têm 
participado nos encontros de Verão, desde há quatro anos na casa do grão
 de mostarda. 
 
 Em 2013, diante das alterações sociais, 
resultantes de decisões políticas e financeiras desumanizadoras que têm 
provocado o desânimo e a falta de confiança na vida pessoal e coletiva 
da sociedade, a comunidade decidiu que o conteúdo da “Carta em busca…” 
deveria reflectir as buscas, os anseios e as preocupações dos diferentes
 grupos de cristãos com os quais temos caminhado. Que fazer? Como agir 
perante situações da injustiça institucionalizada? Que caminhos buscar 
para possibilitar uma sociedade fundada, não na ganância do lucro e do 
consumismo inconsciente, mas na solidariedade fraterna? 
 
 
Dedicada ao tema “Mudar o coração… Viver na esperança atuante!”, a 
“Carta em busca…” de 2013 que agora deixamos nas vossas mãos, procura 
abrir espaços de diálogo e ser fonte de inspiração para o encontro anual
 do Verão de 2014.
 
 Com estima fraterna,
 comunidade grão de mostarda
 
 
 Mudar o coração… Viver na esperança atuante!
 
“Quando vivemos a partir do coração surge a novidade, porque a atenção 
própria do coração remete-nos constantemente para o presente. E este é 
sempre novo, porque é um fluir incessante.” Carlos Maria Antunes, Só o 
Pobre se faz Pão (1)
 
 
 
O momento presente que vivemos, não 
apenas no nosso país mas também por todo o mundo, convoca-nos a uma 
mudança de coração; uma mudança convicta que não permitirá deixarmo-nos 
submergir pela desumanização instalada pelas diferentes instâncias 
políticas, financeiras e sociais na vida pessoal e coletiva das 
sociedades.
 Conscientes da perturbação causada pela angústia do 
desencanto ou por uma cultura de desconfiança que nos tornariam 
incapazes de agir, não permitiremos que o coração se acomode ao medo que
 sufoca e imobiliza… Somente abrindo o nosso coração à realidade, ao 
“fluir incessante” do quotidiano, como propõe o monge Carlos Maria 
Antunes, se renovará o nosso olhar sobre o tempo presente. E assim 
descobriremos caminhos de confiança e novas formas de solidariedade, 
animados por uma esperança atuante.
 
 Vivendo numa esperança 
atuante, cultivada pelo olhar atento aos acontecimentos redescobriremos 
possibilidades de mudança, a novidade que o agora já nos anuncia: 
“Quando vivemos a partir do coração surge a novidade…”, recorda-nos 
Carlos Maria Antunes. 
 A esperança atuante não é uma atitude de 
ingenuidade diante dos danos causados por decisões políticas e 
interesses financeiros que estão a ser perpetrados sobre a Terra e a 
Humanidade, particularmente sobre os mais fragilizados. Todavia, o 
sofrimento humano e a depredação dos bens naturais podem colocar-nos 
interrogações, como o irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, 
recentemente sublinhou: “Os diferentes tipos de violência no mundo e a 
exploração irresponsável dos recursos do planeta deixam-nos 
desconcertados (…). Como podemos gerir esta tensão entre a convicção de 
que há apenas uma família humana e as diferenças que vemos, talvez mesmo
 perto de nós?” (2).
 
 As decisões de uma esperança atuante só 
surgirão a partir da bondade coração, que nos remete à urgência de 
relações fraternas. “Sem este olhar não há nenhuma ideologia, por mais 
generosa que seja, que me permita aproximar do outro.” Adverte-nos 
Carlos Maria Antunes, para concluir: “Não me faço irmão do outro; 
descubro-me irmão do outro.” A partir desta consciência, o nosso coração
 exigirá um novo paradigma civilizacional; uma diferente maneira de 
viver as relações humanas e um outro modelo de convivência política e 
económica entre as nações e os povos. 
 Até agora o complexo sistema 
financeiro apoiou-se na “abundância consumista”, levando as pessoas a 
acreditar que “pretendia conduzir à felicidade através da satisfação dos
 desejos de todos” (3). Propondo uma sociedade assente na vivência “da 
autolimitação e simplicidade voluntárias, da abundância frugal, da 
reabilitação do espírito da doação e da promoção da convivialidade” 
Serge Latouche conclui que “a frugalidade encontrada” permitirá 
“reconstruir uma sociedade de abundância.” 
 
 Não serão, 
certamente, os grandes feitos que semearão a esperança no terreno da 
morte e da violência, como parece haver, por vezes, a tentação de fazer 
em tempos de desilusão social. A nossa fragilidade tornar-se-á 
consciência de uma conversão de coração que nos fortalecerá na busca de 
caminhos fraternos… Como caminhar neste sentido? “Fazendo a experiência 
da solidariedade com outros, a experiência da pertença uns aos outros, 
de depender uns dos outros”, porque só assim “descobrimos que a bondade 
descobre-se não em ‘cada um por si’, mas em investir na solidariedade 
entre os humanos” (2). Ou seja, viver, já hoje, a esperança enquanto 
caminho e horizonte, experimentando mudar o presente… O “pão” de ontem 
retirado aos injustiçados tem de ser buscado e exigido, mas não nos 
remeter para os antigos paradigmas socioeconómicos. Os muros erguidos 
entre nós pelos sistemas políticos e sociais dominados pelo poder 
financeiro consolidaram a indiferença dentro dos corações, perante o 
desrespeito pelos direitos humanos. Temos consciência que nenhum 
daqueles muros poderá ser derrubado da noite para o dia… A escassez de 
atitudes humanizadoras só será ultrapassada com gestos de amabilidade 
solidária. Se o nosso coração, a nível pessoal, exige um empenhamento 
imenso para mudar, quanto mais não custa mudar o coração coletivo da 
humanidade… 
 “Tudo muda, e muda radicalmente, quando a nossa rotina 
quotidiana é vivida com atenção. Ao dizer atenção, dizemos de uma 
faculdade interior, a que poderíamos chamar o olhar do coração.” As 
palavras de Carlos Maria Antunes são-nos confirmadas pelas muitas 
iniciativas que nos vão desvelando as possibilidades de uma nova 
Humanidade… 
 
 Todos os dias conhecemos, em diferentes partes do 
mundo, pessoas que não se deixam agarrar pela espera dos indiferentes, 
nem ensombrar por sistemáticas notícias de tramas de embustes e 
corrupções, de violências e ódios, preferindo experimentar a esperança 
no exercício do seu quotidiano. Este caminho é assim sublinhado numa 
feliz expressão do teólogo Andrés Torres Queiruga: “ (…) não há mais 
funda ‘fidelidade à terra’ que aquela que vive animada pelos dinamismos 
do ‘Reino que já está entre vós’ (Lucas 17,21) ” (4). 
 Ou seja, é em
 nós que reside a capacidade de tornar a Terra um lugar habitável, um 
lugar onde seja inconcebível que ao órfão e à viúva não se faça Justiça…
 De nós depende uma nova soberania, construída a partir do presente. Uma
 soberania nascida do nosso interior mais profundo, porque depende da 
nossa vontade, da nossa convicção. Uma nova soberania exige-nos 
comportamentos novos… Uma nova soberania exige-nos decisões e atitudes 
de “fidelidade à terra”; uma fidelidade somente possível para os 
corações convictos de que “o presente é (o lugar) de onde se inicia a 
libertação, da qual o futuro será fruto” (4).
 
 
 (1) Carlos Maria Antunes, “Só o pobre se faz Pão”, Paulinas, Prior Velho (Portugal) 2013.
 
 (2) Irmão Aloïs, “Um dinamismo de solidariedade” (Julho 2012). 
 Ver: http://www.taize.fr/pt_article14171.html
 
 (3) Serge Latouche, “La sociedad de la abundancia frugal. 
Contarsentidos y controvérsias del Decrecimiento”, Icaria, Barcelona 
(Espanha), 2012. 
 O economista e sociólogo francês Serge Latouche 
conclui que o sistema económico conduziu-nos a uma “insatisfação 
generalizada”, porque “as pessoas felizes são péssimos consumidores.” 
Propondo “a abundância frugal numa sociedade solidária”, recorda-nos que
 a crise e austeridade decorrente do atual modelo financeiro, “só pode 
originar um ciclo deflacionário que precipitará uma nova crise.” 
Prevenindo que, “perante esta ameaça evidente”, alguns economistas já 
propõem “o relançamento do consumo e do investimento para restabelecer o
 crescimento”, SergeLatouche avisa que a Terra já não suportará por 
muito mais este tipo de decisões. E, recordando Jonh Stuart Mill 
(1806-1873), defende que “a sociedade liberta da obsessão do 
crescimento” conseguiria sair da atual “mitologia produtivista” em que 
está enredada: “Se os espíritos tivessem outra perspetiva do que apenas 
adquirir riquezas, existiria mais lugar que nunca para todo o tipo de 
progressos culturais, morais e sociais, e assim ter uma melhor qualidade
 de vida (…).” 
 
 (4) Andrés Torres Queiruga, “Esperanza a pesar 
del mal – La resurrección como horizonte”, Sal Terrae, Santander 
(Espanha), 2005.
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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