domingo, 7 de fevereiro de 2016

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

quantos refugiados habitam na nossa cidade ou no nosso prédio? Não nos referimos aos que agora se embrenham pelas fronteiras da Europa. Falamos dos sós, dos que tiveram sempre de se refugiar, aqui ou ali, desta ou daquela maneira, para sobreviverem.

O ESCUTAR A VIDA desta semana conduz-nos àquela interrogação. O internamento do Pedro (*) numa comunidade terapêutica para desabituação de drogas e álcool, actualiza nos nossos corações as palavras do irmão Roger: “Hoje, em dia, a família humana tem uma grande necessidade de entrar num tempo de confiança…” Estaremos dispostos, como propõe o fundador da comunidade de Taizé, a viver como “servos da confiança” no nosso quotidiano? 

(*) nome fitício





OS REFUGIADOS DO NOSSO QUOTIDIANO





EM CADA CONVERSA sempre haveria de referir: “Eu sou um só!”. Não o dizia como quem se lamenta ou como quem mendiga piedade, mas com uma tristeza imensa que se lhe desprendia do falar grave, quase pronunciado em surdina. Com a tristeza funda de quem perdera, numa imensa noite, todas as referências vitais…

E na verdade, perdera. Do pai afirma sempre: “Foi o palhaço mais famoso…”, mas não o conheceu! “Morreu muito novo”. Da mãe, de quem se recorda vagamente e da relação entre ambos conta versões diversas, diz: “Era conhecida em todos os circos: andava de mota no poço da morte”. Estas referências ao pai e à mãe revelam somente um tom de uma avaliação no superlativo, porque, na convivência, percebe-se como tudo foi caótico na vida deste homem que na idade de 40 anos nem sabe ler.

Nasceu nos arredores de Lisboa, na Amadora. E só sabe porque é o Bilhete de Identidade que o informa. Como chegou a Braga? Não sabe. Umas vezes - como há oito dias, na entrevista de internamento na comunidade de desintoxicação de álcool - conta que foi mordido por um rato, num circo em Lisboa, e que a mãe o mandou “para junto de uma tia, que vivia em Braga, para o tratar”. Noutras alturas, diz que veio com a mãe e a irmã, quando tinha 8 ou 9 anos. E depois ficaram… Na verdade, como foi?

AGORA TEVE A SUA PRIMEIRA FESTA DE ANOS… Um dia depois de ter chegado à comunidade terapêutica. “Fizeram-me um bolo e tudo…”, dizia ontem, ao telefone - o primeiro contacto com o exterior, após o internamento. Para trás, ficaram um sem-número de caminhos preenchidos de esquinas, como a história da irmã que, além de lhe cobrar dinheiro pelo quarto onde dormia, fez com uma operadora de comunicações um contracto em nome dele. E que quando teve conhecimento que alguém o estava a ajudar a deslindar mais esta esquina da vida, colocou-lhe os sacos com a roupa na rua. E com eles vinham também os seus desenhos (na maioria rostos índios, nos quais ressalta a harmonia das cores), aos quais se dedicava entre os biscates numa oficina onde fazia junções para os tubos das botijas de gaz e a ajuda ao senhor do café - na verdade, uma taberna onde servem refeições, e à tarde se reúnem reformados e desempregados para beber um tinto e jogar cartas… Quando foi despedir-se deles, disseram-lhe: Porta-te bem, oh Pinóquio! Depois quando vieres já podes beber connosco.”

Pinóquio? Sim, diz ele na entrevista na comunidade terapêutica. “Era o meu nome no circo”. E que fazia, perguntam-lhe. “De palhaço”, responde. Então logo o convidam para alegrar festas na comunidade. Que não: “Agora já não tenho vontade disso…” “Porquê?”, insistem. “Porque não tenho alegria. Sou um homem só!”, diz, na sua voz quase silenciosa…
Ontem já não falou assim: “Gostaram dos meus desenhos…”.


Foto: Ricardo Cruz (www.porto24.pt)
 

grão de mostarda

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