segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

DE QUE MUNDO SOMOS?

Caríssimas e caríssimos,

Nada do que nos rodeia pode ser “estranho à dimensão da fé”.
Na resposta à carta de Luísa Alvim (publicada a 11 de Novembro), o pe. Valentim Gonçalves assume que no momento crítico que estamos a viver “a missão dos discípulos de Jesus não poderá deixar de passar pela proximidade física e afectiva, pela partilha e, sem nunca o esquecer, pelo sentido crítico e profético de quem, no meio das trevas, tem uma luz, ainda que muito pequenina, a apontar para uma nova Terra”.
E quando já se reconhece que “há pessoas, já não só a viverem no limiar da pobreza, mas sim ultrapassando os limites do aceitável (sem trabalho, sem dinheiro para a renda de casa, com a ameaça de despejo sobre a cabeça, com a água e electricidade cortadas, sem resposta para as necessidades mais básicas) ”, os cristãos hão-de ser “o rosto de pessoas que não suportam a injustiça”, escreve, evocando palavras do bispo francês Jacques Gaillot.
No final, uma reflexão para o interior da Igreja. O pe. Valentim Gonçalves não esquece a própria “casa”, espaço de fortalecimento da fé, cuja porta há-de conduzir sempre “ao acolhimento”.
Com estima fraterna,

grão de mostarda

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito -, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.
Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.


Carta de Valentim Gonçalves para Luísa Alvim
 
Estimada Luísa,

As interrogações da tua carta são as mesmas que me interpelam e inquietam, mas ao mesmo tempo as que dão sentido ao meu viver. É que não nascemos para vegetar ou simplesmente hibernar na vida. Também não para nos lamentarmos. Foi-nos dada a capacidade de superar as nossas limitações. A propósito, recordo o testemunho de um dos náufragos de Caxinas, o qual há dias afirmava que, mesmo perdendo tudo, mas salvando a vida, se fica com o mais importante.

Porque tudo o que nos rodeia não é estranho à dimensão da fé, concordo com a tua afirmação de que os numerosos e ricos documentos da Igreja se não forem enquadrados e encaminhados para a realidade da vida das pessoas, não passarão de cartazes belos, mas sem qualquer consistência perante as inclemências do tempo. Lembro a resposta que o bispo Gaillot deu ao jornalista que lhe perguntou qual era a Igreja com que ele sonhava: “Uma Igreja do terreno, da base, de homens e mulheres abertos aos outros, que acolhem e trabalham com os outros. Os cristãos são o rosto de pessoas que não suportam a injustiça, que se batem pela paz. E levam a mensagem, o fermento do evangelho”.

Por isso, numa situação como a que atravessamos, em que há pessoas, já não só a viverem no limiar da pobreza, mas sim ultrapassando os limites do aceitável (sem trabalho, sem dinheiro para a renda de casa, com a ameaça de despejo sobre a cabeça, com a água e electricidade cortadas, sem resposta para as necessidades mais básicas), a viverem numa quase total dependência, a missão dos discípulos de Jesus não poderá deixar de passar pela proximidade física e afectiva, pela partilha e, sem nunca o esquecer, pelo sentido crítico e profético de quem, no meio das trevas, tem uma luz, ainda que muito pequenina, a apontar para uma nova Terra.

Assim, ficando feliz com a UNESCO ao reconhecer o fado como património imaterial da humanidade, não aceito aquele fatalismo que o envolve e que se vai colando ao povo português como sua característica. Estando onde estamos, com duas décadas de oportunidades, algumas aproveitadas, mas muitas desperdiçadas e que nos fazem sentir mendigos à porta dos outros, há que lutar para que essa ideia de que este é o nosso “triste fado”, e que levou o seleccionador nacional Scolari há uns anos a dizer que “os portugueses têm medo de se sentir felizes”; este fatalismo ou “destino” como alguns dizem, deve ser combatido com atitudes de coragem, inteligência, esforço e persistência. Quando, há duas semanas, vimos como o povo mais uma vez se mobilizou para responder ao apelo do Banco Alimentar para a partilha de alimentos, somos levados a acreditar nas potencialidades de bem que existem no meio de nós – mas não podemos ficar nesse degrau, o que seria alienante; temos ao mesmo tempo que actuar de forma que a pobreza seja ultrapassada, indo à raiz dos problemas e provocando transformações estruturais na mente e na organização da sociedade. 

A Igreja só será agente de transformação quando as comunidades forem animadas pelo espírito do Evangelho e não se assemelharem a qualquer empresa ou negócio preocupado com números na conta bancária, muitas vezes gerida no desconhecimento e até à revelia da comunidade dos crentes; ou quando a preocupação do anúncio de uma boa-nova acolhedora e dinamizadora para a comunhão superar a preocupação disciplinar e burocrática; ou quando os agentes pastorais, nomeadamente os padres, forem mais irmãos e menos inspectores burocráticos a verificarem quem pode ou não entrar na casa da Igreja; ou quando passar a haver mais humildade, a porta que conduz ao acolhimento, e não tanta doutrinação a catalogar as pessoas em prateleiras modeladas por medidas humanas diferentes das evangélicas; ou quando a preocupação com a proximidade do povo e especialmente dos mais pequenos superar a preocupação com o património.

Neste momento complicado da vida nacional e internacional, olho para um dos muitos sinais da força transformadora que o Espírito vai dando no mundo através daqueles que fizeram do Evangelho a regra de vida, como o Abbé Pierre, que em vez de dizer ao desgraçado assassino e suicida mal sucedido “toma isto que eu te dou” preferiu dizer-lhe “outros precisam de ti” e assim o transformou no co-fundador da obra “Companheiros de Emaús”.

Fraternalmente

Valentim Gonçalves

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