Caríssimas e caríssimos,
A maior liberdade é viver em verdade. Em verdade consigo mesmo e com a sociedade com quem se comparte o quotidiano. Cláudio, um jovem professor a viver nos Açores, que assumiu socialmente a sua homossexualidade, sublinha precisamente que o seu “ideal” é “ser verdadeiro”. No fundo: “viver realizado”. Foi esta decisão interior que o torna uma pessoa sem ressentimentos e empenhada em acrescentar, com a sua vida, bondade à humanidade (ver ANEXO).
O retrato que Paulo França nos coloca em “Escutar a vida”, torna-se eco de um livro que recentemente nos veio parar às mãos, através de Andrés Torres Queiruga. Este teólogo católico, que escreveu o prólogo de En tránsito del infierno a la vida – la experiencia de un homossexual cristiano, sublinha: “Se algo admira neste livro admirável é o tom positivo e reconciliado: jamais a rebeldia se converte em agressividade, nem a dor em amargura” (ver O LIVRO DO MÊS em ANEXO). De igual modo, Cláudio deixa escapar atitudes agressivas ou de amargura, mesmo quando as circunstâncias lhe foram desfavoráveis…Pelo contrário, fundou uma associação cívica para apoiar quem sofre o medo da rejeição e a discriminação homofóbica, além de continuar a fazer formação académica na área das Ciências da Educação, tão importante a nível profissional, neste caminho de verdade que traçou como objectivo de vida.
Com estima fraterna,
grão de mostarda
Cláudio é um jovem professor. Nasceu em 1977, no Brasil e fixou-se em Portugal ainda criança. Conheci-o quando era licenciando em ensino de Ciências e Matemática, na Universidade dos Açores. Mais tarde, o Cláudio pós-graduou-se em Educação Especial, área na qual trabalha actualmente. Vive em Angra do Heroísmo, tem dois irmãos; o pai tem 68 anos e a mãe 57. Casou civilmente há mais de um ano com um cabeleireiro que conheceu através da internet e por quem se apaixonou.
O Cláudio assumiu a sua orientação sexual perante a família e os amigos, quando tinha 19 anos. E progressivamente foi-se assumindo até completar 33 anos de idade. E, quando se lhe pergunta pela razão que o levou a assumir a sua orientação e, até mesmo, casar civilmente, ele responde: “O meu ideal de vida é ser verdadeiro, sincero, honesto, livre, feliz, realizado...”.
Toda a comunidade escolar reagiu bem ao facto de socialmente ele não ter escondido a sua situação. Nenhum relacionamento ficou perturbado, incluindo a sua avaliação profissional. Os maiores problemas surgiram, somente, com os alunos que já apresentavam falta de civismo no meio escolar, antes de se assumir. A escola tinha mais de dois mil alunos, dos quais, cerca de 100 eram seus. Devido à sua orientação sexual, o Cláudio foi perturbado, de forma significativa. Cerca de 10 alunos, uns seus e outros não. Houve momentos muito difíceis de ultrapassar… Quanto aos pais e encarregados de educação, até hoje, não teve nenhum problema a que se pudesse dizer que estava relacionado com a sua orientação sexual. O comportamento público de Cláudio e do seu marido é natural – e como exemplo, refere que o beijo surge apenas quando acha necessário.
Actualmente, o Cláudio está a fazer mestrado em Ciências da Educação - Educação Especial, com incidência nas temáticas educação sexual, diversidade e deficiência. Com esta especialização, ele pretende integrar na prática didáctica e pedagógica, bem como na educação em geral, a homossexualidade de forma natural e digna. Paralelamente, fundou um movimento cívico de defesa desta causa – de prevenção da homofobia e de protecção daqueles que vivem em grande silêncio e obscurantismo a sua identidade sexual, ainda muito censurada e mal conhecida dos portugueses, injustamente julgada como defeito ou doença e associada à promiscuidade.
Nunca faltou a Cláudio coragem e determinação. A sua ação vem-se fazendo em duas frentes de intervenção fundamentais: a educação e a cidadania. Ele procura viver em verdade e esta está sempre associada ao seu empenhamento no bem comum, ajudando os que sofrem o medo da rejeição, a discriminação homofóbica, dando-lhes voz e dignidade humana.
Cláudio vive com o companheiro “em verdade”, como gosta de sublinhar. A verdade também se associa ao bem e este também é associado, por tantas mulheres e homens, a Deus...
Paulo França
Foto: © Bárbara Beraquet
O título deste livro não é casual nem tão pouco retórico. Constitui em si mesmo, como salienta o teólogo Andrés Torres Queiruga no prólogo “a descrição verdadeira, por vezes comovente, de um processo terrivelmente real. Felizmente, processo de salvação, de saída para a aurora depois de uma longa e duríssima noite escura…”.
En tránsito del infierno a la vida – la experiencia de un homossexual cristiano foi escrito na primeira pessoa por um ex-militar de alta patente das Forças Aramadas de Espanha. Juan González Ruiz, já falecido (hoje teria 70 anos), oferece-nos o diário de uma vida que se viu envolta num ambiente de medo, social e religioso, e que parecia destinada à solidão, à destruição interior (Juan foi obrigado a abandonar a carreira militar devido a uma situação de alcoolismo, resultante da sua situação reprimida de homossexual) e ao abandono total – desde a família até a Deus. Todavia, Juan Ruiz não consentiu a escuridão como destino. As circunstâncias proporcionaram-lhe encontros (entre eles, precisamente o teólogo católico Andrés Torres Queiruga) que lhe ajudaram a saltar o abismo, particularmente naquilo que ele sentia mais fundo: a compreensão da sua condição homossexual na relação com Deus…
Juan Ruiz, depois de se encontrar e de visitar diversas comunidades católicas nos EUA, nas quais as mulheres e homens homossexuais são aceites e integrados, voltou a Madrid com muita alegria – conseguiu ainda tornar-se activo na reunião de pessoas que o ajudaram no seu desejo de congregar grupos de cristãos homossexuais. A vida não lhe deu tempo para realizar tudo o que desejava… Mas o seu livro é um testemunho comovente de todo o seu percurso de vida, da sua reconciliação consigo mesmo e com a fé no Deus amoroso, com a família e com a sociedade… Esta reconciliação fica assim expressa: “Vejo os casais de qualquer idade e sexo: jovens fazendo planos para o futuro, alguns mais velhos, com filhos e netos, anciãos sozinhos depois de mil vicissitudes, e experimento uma grande ternura, um impossível desejo, como Proust, de voltar ‘em busca do tempo perdido’. Mas, ao mesmo tempo, penso que essa é uma ideia destrutiva. Que, ao contrário da mulher de Lot, é melhor não olhar para trás, mas sim reconciliares-te com Deus, com a tua ‘história’, a tua circunstância; e sinceramente, muito sinceramente, posso sentir-me feliz, muito feliz de me encontrar agora aqui, tal como sou, como me sinto, como me comporto, porque ao fim e ao cabo, a minha vida resulta foi mais proveitosa do que poderia parecer… “.
Impossível passar à frente das palavras de Andrés Torres Queiruga, no prólogo, que nos convidam a “abandonar bizantismos moralistas”, tornando-nos, antes, anunciadores da “doutrina libertadora de Jesus que convidou para a sua companhia e a sua intimidade a quantos os que, por qualquer motivo, andam ‘carregados e angustiados’”. Quantas vidas seriam mais humanas se, nos nossos corações, houvesse um espaço de amabilidade e solidariedade fraterna!
En tránsito del infierno a la vida –la experiencia de un homossexual cristiano, Juan González Ruiz, Desclée de Brouwer, Bilbao (Espanha) 2002.
(As Paulinas Editora, em Portugal, aceitam encomendas de livros daquela editora).
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