Caríssimas e
caríssimos,
“Estamos perante um incêndio”, escreve Valentim Gonçalves avisado
pelo quotidiano dos que são “atingidos diretamente pelas chicotadas da crise”.
E que fazer? Como “fugir ao calor sufocante” deste fogo não evitará “sermos
engolidos pela voracidade das chamas”, propõe: iniciemos por “encontrar algum
caminho”, cujo primeiro desafio exige que inevitavelmente passemos por uma
“conversão da mente”… É que “na hora da verdade só o verdadeiro nos libertará”,
acentua no final desta sua carta. (ver ANEXO)
Fraternalmente,
grão de mostarda
Converter a mente… e o coração
Estimada Luísa,
Condizendo com as tardes
sufocantes dos últimos dias, o ar pesado que se respira a nível político e
social parece conduzir-nos para atitudes compreensíveis, mas que são
irracionais quando demasiado condicionadas pela emoção. Para fugir ao calor
sufocante anseia-se por um refúgio debaixo de uma sombra qualquer e esquecer o
que à volta se passa; ou então, ainda mergulhando mais para dentro da agitação
que mexe connosco, temos a consciência de que é preciso encarar o touro de
frente para dominá-lo e não seja ele a dominar-nos.
Entendendo que é a segunda opção
que temos de tomar, ainda assim concluo que eu faço parte dos muitos que não
são atingidos diretamente pelas chicotadas da crise. Por isso o meu discurso
terá sempre algo que não me proporciona tão profunda autoridade como a daqueles
que sofrem no corpo as ditas chicotadas. Ainda ontem uma mãe partilhava comigo
a situação bizarra (e que se repete cada vez mais) de estar privada de qualquer
apoio público, porque tendo perdido o emprego ficou a receber o respetivo
subsídio e, por causa deste perdeu o abono que recebia para filha menor de
quatro anos; tendo perdido agora o subsídio de desemprego, fica sem esse e sem
o abono da filha, restando-lhe todos os encargos normais: renda de casa, água,
energia, alimentação e demais despesas correntes. Trata-se apenas de um exemplo
entre muitos e cada vez mais numerosos que diariamente nos interpelam.
Perante situações destas talvez
fosse muito útil fazer um exercício mental para nos colocarmos na pele dessas
pessoas e tentar saber como é que elas entendem e sentem os discursos, os
confrontos, os raciocínios e os arrazoados daqueles que falam da coisa pública
e também das nossas vidas.
Estamos perante um incêndio que
ameaça chegar à nossa casa. Não basta discutir sobre os causadores; sem os
ignorar, há que tentar fazer algo para o extinguir; em interação com os outros
que sentem o mesmo, há que encontrar algum caminho, ainda que seja um pequeno
atalho, para atacar as chamas. Trata-se de uma atitude de humildade que nos
conduz a uma conversão da mente, que leva ao envolvimento do coração e ao
nascimento da ação.
Olhamos para as figuras de proa,
para as figuras públicas que cada dia falam da nossa vida. Também há que olhar
para aquelas figuras discretas, desconhecidas, insignificantes, mas que levam
consigo o que há de mais belo, de mais nobre, e também de mais sólido na
humanidade: a honradez, a fidelidade à palavra que por vezes mal sabem
articular, o esforço e a incansável dedicação à sua missão de cada dia, que
pode não passar das pequenas e banais coisas do dia-a-dia. Estou a pensar nos
meus amigos A. e C. que há dias visitei no bairro: as suas vidas são uma epopeia
de pequenos passos, típicos de quem se vê forçado a deixar o seu país, a viver
numa barraca, a tentar ganhar espaço na sociedade para si e para os filhos.
Dizia-me ela: “Estamos numa grande crise; mas para nós é igual; sempre vivemos
nela; ele sempre trabalhou como servente de pedreiro e eu nas coisas aonde se
podia chegar: em casa, nas limpezas, na luta pela vida vendendo peixe ou
continuando como hoje a vender os couratos que preparo à sombra de uma árvore.
Mas quando era preciso trabalhar até às 3 horas da madrugada eu trabalhava,
sabendo que tinha que me levantar como sempre às 6 horas. E os nossos filhos
foram educados nisso”. (Por isso se compreende que eles já tenham concluído a
formação universitária ou estejam perto de o conseguirem).
Ultrapassando a partidarização e
a mera ideologia, creio que temos de nos aproximar das pessoas atacadas pelo
incêndio e juntos ir descobrindo os pequenos passos a dar para não sermos
engolidos pela voracidade das chamas. Na hora da verdade só o verdadeiro nos
libertará.
Que o Espírito que renova constantemente
a face da Terra te acompanhe neste tempo de “férias”.
Fraternalmente,
Valentim
Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus
“diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o
Amor Infinito –, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais
católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara
Municipal de Vila Nova de Famalicão – atualmente a trabalhar na Casa de Camilo
- Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.
Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua
constituição como paróquia, em Outubro de 1999. A população do Prior Velho
(concelho de Loures) conhece este missionário do Verbo Divino, desde há duas
décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da
Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Membro
da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, assume também trabalho
pastoral na antiga Quinta do Mocho (atual Terraços da Ponte, em Sacavém),
igualmente habitado por uma população de imigrantes africanos.
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