Carta em busca 2015
DA BUSCA DA PAZ INTERIOR
A UMA AMABILIDADE COMPROMETIDA
Será possível a Humanidade encontrar um “tempo
de paz”, se no íntimo do nosso coração não vivermos pacificados?
O tempo presente afigura-se incapaz de
fomentar confiança e bondade de coração no ser humano. O temor, o
individualismo e a ambição dominam todas as relações humanas, a nível pessoal e
também estrutural, no interior das sociedades. Vivemos numa época que parece
contrária a uma reconciliação interior (1).
A busca da paz interior exige-nos um olhar ao
mais profundo de nós mesmos… Mas este olhar tem de ser construído “sem
máscaras”, sugere-nos Thomas Merton, apontando que só assim será possível
desvelar que aquilo que “nos aquece é o fogo, não o fumo” (2). Ou seja, um
olhar que nos solicita uma escuta da nossa própria essência; uma escuta que
exige cavar fundo o que nos habita, tantas vezes distorcido pelo fumo que nos
envolve.
Este desafio, condição insubstituível para
uma mudança de coração, não nos requere recriminações ou juízos de valor de
qualquer ordem sobre a nossa vida. Trata-se de nos conhecermos, de nos
desnudarmos, aceitando o que somos e como o somos. Porque é na escuta que o
olhar se vai treinando a reconhecer as nossas raízes, até atingir a compreensão
de que somos fragilidade e nela vivemos (3).
Experimentada na fidelidade a nós próprios, a
busca da paz interior sempre nos remeterá ao “Absoluto Invisível” que nos
habita, sejam quais forem os caminhos que cada uma e cada um decidir
calcorrear. No fundo, trata-se de uma inquietude que “desperta o nosso coração”
e nos torna “vigilantes para renunciarmos a tudo o que nos possa alienar”, não
permitindo “que nos instalemos na mediocridade” (4). E esta inquietude nos
orientará inevitavelmente a um processo de mudança; não de conversão a uma
doutrina ou ideologia, mas ao encontro do fogo que nos aquece: o nosso
verdadeiro SER... (5).
Esta inquietude, pouco a pouco, suscitará no
mais profundo do nosso SER uma atenção e abertura…. Ou seja, uma interpelação
que nos conduz o olhar interior para o exterior, para a vida que acontece e da
qual somos também acontecimento.
A partir deste encontro com o nosso coração
jamais nos será possível permanecer imobilizados, indiferentes diante da
realidade. Começamos a viver conscientes “de que o que pode paralisar o ser
humano é o cepticismo ou o desânimo” (6), enquanto decisão primordial para a
mudança interior, como o monge cisterciense Carlos Maria Antunes assinala:
“Quando vivemos a partir do coração surge a novidade, porque a atenção própria
do coração remete-nos constantemente para o presente. E este é sempre novo,
porque é um fluir constante” (7).
É a partir do olhar do coração que nos
tornamos “artesãos de paz, mulheres e homens de compaixão” (8). E assim
descobriremos a beleza profunda de cada ser humano, assumindo decisões de
amabilidade comprometida, das quais hão-de germinar novos caminhos de
confiança. De uma confiança que não se transforma em aventura sem futuro, mas
sim em decisões capazes de transpor os desertos da indiferença, a escassez de atitudes humanizadoras…
Não se trata de entregar a nossa liberdade a
um qualquer “destino”, mas sim de ensinar os nossos corações que o caminho
individualista como itinerário de felicidade é uma ilusão. Somente de uma amabilidade comprometida poderá nascer um “tempo de paz”,
de uma genuína hospitalidade e de uma gratuidade total.
E, então, nada mais nos restará senão o Amor…
comunidade grão de mostarda
(*) Viktor Frankl, “El hombre en busca de sentido”
(Herder, Espanha, 2007)
Neurologista e
psiquiatra na Universidade de Viena, Viktor Frankl (1905-1997) foi prisioneiro
do regime nazi
(1)
“O homem
que não tem paz consigo mesmo necessariamente projeta a sua luta interior na
sociedade onde vive, difundindo o contágio do conflito por todos que o
rodeiam,” recorda-nos Thomas Merton (1915-1968). Todavia, o monge cisterciense
que não se deixou prender por um olhar superficial sobre a Humanidade,
confiadamente sublinhou: “Por mais que possa parecer que o homem e o seu mundo
estão em ruínas, e ainda quando possa ser assustador o desespero do homem,
enquanto este continue a ser homem, a sua própria humanidade continuará a
afirmar-lhe que a vida tem sentido.” “Los hombres no son islas”, Sudamericana Editorial, Buenos Aires, 2000
(versão transcrita: “Escritos Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006)
(2)
“Escritos Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006
(3) Assumir a nossa fragilidade não pode ser entendido como um
infortúnio inevitável, mas sim de que, naturalmente, a condição humana não nos
possibilita uma permanente resposta consciente e ética em todas as
circunstâncias da vida.
(4)
Da reflexão do irmão Aloïs, prior da
Comunidade de Taizé, na oração da noite de 5 de Julho
de 2012
(5)
Thomas Merton comenta que o processo de mudança de coração não solicita ser uma procura da perfeição, mas “uma apreciação intuitiva da própria realidade interior”, do
nosso verdadeiro SER, enquanto percurso que nos possibilitará “aprender a viver
como pessoa humana unificada.” “Escritos
Esenciales”, Sal Terrae, Santander, 2006
Neste processo
de mudança de coração podemos sentir como necessidade vital sermos escutados. É
muitas vezes necessário confrontarmos com alguém sentimentos negativos ou a
imagem deformada de nós próprios. Quem já foi escutado com afecto e amabilidade reconhece o
conforto interior que é podermos desvelar a bondade que habita os nossos
corações.
(6) Irmão Roger
de Taizé, “Viver para amar – Palavras escolhidas”, Paulinas, 2010
(7) “Só o Pobre
se faz Pão”, Paulinas, 2013
(8) Da reflexão
do irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, na oração da noite de 14 Julho de
2011
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