Caríssimas e caríssimos,
“O racismo inconsciente,
inoculado, absorvido, paternalista (…) exige uma luta consciente e constante”.
O ESCUTAR A VIDA desta semana, escrito por Natalia Fernandez remete-nos para um
olhar no tempo oportuno, e tantas vezes descurado: o dito e o feito no
quotidiano para com aqueles a quem não se lhes reconhece dignidade, os
imigrantes.
Natalia, galega a viver
em Santiago de Compostela, é companheira na descoberta de caminhos de
amabilidade comprometida, juntamente com outros amigos espanhóis e portugueses.
Com estima fraterna,
grão de mostarda
ACTO 1º:
“ELA ENTROU
EMPURRANDO O CARRINHO DO BEBÉ. Sentou-se numa cadeira. Aguardava para
falar com os funcionários da recepção do centro de saúde. O bebé chorou e ela
preparou um biberão fazendo malabarismos para segurar o bebé enquanto preparava
o biberão, o leite e o termo... Pensei em ajudá-la, mas ao mesmo tempo, como
ela estava a gerir bem a situação, pensei que a poderia incomodar. Pareceu-me desvalida, pequena, necessitada,
só..., ainda que nada havia no seu comportamento que justificasse estes
adjectivos. Chegou
a enfermeira da recepção. Era uma pessoa solícita, amável. A mulher chegara
tarde: ‘Se tivesses de apanhar um avião, de certeza que não o perdias.’ Eu
também chegara tarde, menos, mas tarde: quando tens um bebé há dias
imprevisíveis. Comigo foi amável, solícita. Talvez a outra não fosse pequena
nem desvalida, mas simplesmente negra.”
ACTO 2º:
“O LOCUTOR COMEÇOU A DIZER: ‘Ao longo da
tarde realizaram-se trabalhos para resgatar 20 pessoas...' . Agucei o ouvido,
que aconteceu? O mundo está muito violento, que aconteceu com essas pessoas?
Imaginava uma tragédia: gente diversa, altos, baixos, louros, morenos, homens,
mulheres, as suas roupas molhadas, a escapar de alguma desgraça. ‘...Nas águas
das Canárias. As pessoas resgatadas viajavam numa pateira juntamente com
outras...', e logo os imaginei negros, com roupas simples, meio afogados... A
outra locutora continuou: ‘Quarenta imigrantes viajavam...' Agora já tudo era
coerente... O uso e abuso intencionado da linguagem fez com que, na minha
mente, os imigrantes deixassem de ser pessoas. O locutor estava a
fazer uma revolução, isso teve de que ser um acto consciente para devolver o
ser pessoa a quem nunca deixou de o ser.”
“O racismo inconsciente, inoculado,
absorvido, paternalista ou não... inaceitável, exige uma luta consciente e
constante para devolver o que roubamos, além do que já foi roubado, às despossuídas e aos despossuídos do mundo: a dignidade
de ser o que são.
Natalia Fernandez
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