sábado, 24 de março de 2012

DE QUE MUNDO SOMOS?


Caríssimas e caríssimos,
Na sua reflexão De que mundo somos?, Valentim Gonçalves retoma a carta de Luísa Alvim sobre a felicidade (1) propondo-nos, neste tempo pré-pascal, uma releitura da “magna carta” de Jesus – As bem-aventuranças, “recuperadas e tornadas vida do crente”, tornar-se-iam “na referência primeira a Deus que põe a pessoa a ‘sentir-com’ o seu semelhante e a fazer-lhe o que gostaria que ele lhe fizesse”. E no sublinhado deste período de sinais preparatórios da celebração da Páscoa, o pe. Valentim sublinha a urgência da “imagem do pai misericordioso”. E só assim a Páscoa será “essa primavera sempre renovada de vida”.

Fraternalmente,
grão de mostarda

(1) Publicada no Facebook a 25/2.

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.

Carta de Valentim Gonçalves
 
Estimada Luísa

Escrevias na tua carta sobre a felicidade que só existe quando a nossa alma repousa na confiança das boas obras; quando essa confiança existe, mesmo que os obstáculos e as dificuldades sejam muitos, a pessoa pode ainda dizer que é feliz. Referias as bem-aventuranças, esse conjunto de ideias que com razão são chamadas a “magna carta” do discípulo de Jesus, que no meio das mais diversas situações é convidado a descobrir a felicidade de estar vivo, porque o Vivo está com ele. É maravilhoso ir descobrindo um Mestre que fala de vida, de alegria, de felicidade e que acompanha as suas palavras com gestos de acolhimento, de misericórdia, de perdão, de confiança, elementos capazes de fazer renascer quem se considerava já morto para a vida; elementos capazes de fazer descobrir o sentido alegre, porque profundo e fundante, para acolher e levar para a frente esse dom que nos é oferecido em cada momento.

Esta faceta de Jesus remete-me para o confronto com os “confessos” desta época e sobretudo do passado, onde a celebração da boa notícia era suplantada pela obrigação de descarregar uma carga perigosa, identificada com pormenores, cautelas, exigências, que deixavam o penitente numa mais ou menos permanente angústia de não ter cumprido algum requisito no meio de tantos apresentados; bem longe da imagem do pai misericordioso que não pode esquecer o filho que fugiu de casa e que, quando ele regressa, nem sequer dá azo a que ele fale da desgraça por que passou, mas manda imediatamente fazer festa, ainda que tenha de se haver com a resistência do irmão mais velho; ou ainda aquela imagem maravilhosa do Deus-Mãe apresentada por Isaías na pergunta: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria” (Is.49,15). À medida que o legalismo – causa do combate tão duro entre Jesus e os fariseus, que acabaria por conduzi-lo à morte – foi entrando na Igreja e controlando até ao pormenor as consciências, passamos a ter, por vezes, doses de veneno introduzidas na mais preciosa iguaria que Deus oferece aos seus filhos. Quando o Evangelho foi substituído por normas e prescrições humanas fomos transformando o que deveria ser a celebração da misericórdia regeneradora num complicado julgamento em sede de processo penal, que – digo-o com cautela, mas com convicção – provocou tanto sofrimento e assim encobriu a essência do sacramento. É como querer prescrever a maneira como cada um vive a sua relação de amizade com o outro, estandardizá-la e ainda por cima constituir-se em juiz da consciência do outro. Foi neste campo que o poder religioso (que não tem nada a ver com o exemplo que Jesus nos deixou) fez uma desgraçada incursão em campo alheio, com consequências não devidamente avaliadas.

Por tudo isto, julgo que as bem-aventuranças deveriam ser recuperadas e tornadas vida do crente, sabendo que como consequência não haveria uma banalização ou um relaxamento das consciências, mas pelo contrário uma nova visão, a de Jesus, sobre a vida e sobre as exigências éticas e morais que daí advêm. Decorando-as, isto é, metendo-as no coração, os próprios mandamentos ir-se-ão diluindo na medida em que a sua finalidade já se realiza na referência primeira a Deus que põe a pessoa a “sentir-com” o seu semelhante e a fazer-lhe o que gostaria que ele lhe fizesse. Não é pelo medo e pela força que as pessoas são cativadas. Não foi essa a prática de Jesus, nem a sua proposta. Não é nos livros e nos títulos que vamos encontrar a chave para evangelicamente darmos a mão a quem está ao nosso lado; só colocando-se na situação deles, indo para a rua, procurando ser compassivo (sentir com), na linha do que escrevia o Fr. Bento Domingues, no Público do Domingo passado (dia 18 Março), “poderemos dizer a palavra de Deus, a palavra do Amor Infinito”. E referia ainda que os Evangelhos diziam dele o que não se dizia de mais ninguém: “Vinde a mim vós todos os que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”. E a Páscoa, essa primavera sempre renovada da vida, não pode ser apresentada senão como a superação da morte, e de todas as suas manifestações, pela Vida que é a última palavra para aquele que recebeu a boa notícia de que “Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (1). E a salvação implica tudo e todos.

Uma Páscoa abençoada.

Fraternalmente

Valentim

(1) ver João 3, 13-17

Sem comentários:

Enviar um comentário