Caríssimas e caríssimos,
Nestes tempos que nos impelem para o individualismo feroz, que lugar tem a confiança na humanidade, na bondade de coração de cada mulher e de cada homem?
Longe de empurrar os nossos corações para o deserto da iniquidade, a actual situação é um convite a acreditar, pelas opções no quotidiano, que em “situações extremas não se solta apenas a parte mais abjecta da condição humana...”.
Na semana em que nos pertence fazer a reflexão de ESCUTAR A VIDA, pedimos desculpa pelo atraso no envio, que deveria ter sido feito no passado sábado.
Fraternalmente,
grão de mostarda
Por uma condição humana humanizada
“Por diversas vezes me perguntam como continuo a enfrentar o quotidiano, depois de ter sido testemunha de tantos horrores durante vinte anos a fazer a cobertura de guerra e catástrofes. A resposta é simples: Em situações extremas não se solta apenas a parte mais abjecta da condição humana, mas também a mais generosa e nobre”.
As palavras do jornalista espanhol Hernán Zin reflectem o que muitas e muitos de nós já decerto vivenciámos, directa ou indirectamente, em diferentes ocasiões. Provavelmente, não tão dramáticas e dolorosas. Mas o que Hernán Zin desejou realçar na sua resposta foi que nem todas as pessoas se tornam reféns da violência e do mal, que nem todas se deixam tomar pela indiferença e pela iniquidade, quando as situações as empurram para o individualismo feroz.
Em “situações extremas” não se assiste apenas à desumanização do ser humano... Nos desertos da nossa vida, pessoal e colectiva, há quem opte por ensaiar viver na confiança, sabendo que à bondade de coração nunca o mal se consegue sobrepor, mesmo que os acontecimentos do tempo presente pareçam ofuscar a realidade que nos aguarda. Não se pode é desistir...
Perante noticiários alarmistas, construídos por discursos que não contam a verdade toda, e situações sociais objectivamente sem saída, devido à subjugação da acção política aos interesses financeiros dos “donos do dinheiro”, parece que tudo irá desabar. Então, “perante a pobreza e a injustiça, algumas pessoas revoltam-se ou sentem mesmo a tentação da violência cega” (1). Mas a solução não pode ser o imediatismo, que parece fazer soltar apenas “a parte mais abjecta da condição humana”. Se, no quotidiano, o olhar se voltar atentamente para pequenos acontecimentos, perceberemos que muitas pessoas buscam sarar feridas, desatar situações de injustiça e impulsionar caminhos solidários contra a corrente. Pessoas comprometidas com a confiança, não se deixando desumanizar pela tentação do deserto que agora nos impõem.
Antes de iniciar os relatos da vida pública de Jesus, os autores dos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas contam que ele foi levado ao deserto (2). Cada uma das tentações narradas dá conta de experiências vividas por Jesus, do seu percurso até ser condenado à morte.
“O deserto será o cenário por onde passará a vida de Jesus. Este lugar inóspito e nada acolhedor é símbolo de prova e de purificação. O melhor lugar para aprender a viver do essencial, mas também o mais perigoso para quem se deixa abandonado às suas próprias forças” (3).
Jesus compreendeu que, quando a opção é não dar tréguas ao poder que corrompe e desumaniza – a actual situação internacional resulta do interesse de um sistema financeiro fundado na corrupção, no mau uso dos dinheiros públicos e na ganância desmesurada de lucros sempre cada vez mais elevados –, o único caminho é assumir uma confiança infinita na Vida. Ou seja, acreditar que a nossa condição humana é capaz de uma convivência fraterna... e solidária. Porque, “longe de fugir das responsabilidades, a confiança permite que nos mantenhamos de pé, quando as sociedades humanas são abaladas. Ela permite-nos avançar, mesmo quando surgem contrariedades. Uma tal confiança torna-nos capazes de um amor desinteressado” (4).
Os relatos evangélicos, ao destacarem que o Espírito “empurrou” Jesus para o deserto, quiseram expressar que “buscar o reino de Deus e a sua justiça, anunciar Deus sem o deturpar, trabalhar por um mundo mais humano é sempre arriscado. Foi-o para Jesus e será para os seus seguidores” (3).
O tempo presente pode também ajudar a renovar um modelo pessoal de vida, descobrindo que a sobriedade e a partilha geram, sempre, abundância. “O Evangelho valoriza a simplicidade de vida. Leva-nos a dominar os nossos próprios desejos para alcançar a moderação, não por nos sentirmos constrangidos, mas por escolha pessoal. É preciso impor-se uma escolha dos nossos desejos. Nem todos são maus, mas também nem todos são bons. Trata-se de aprender com paciência quais devemos seguir com prioridade e quais devemos deixar de lado. Este apelo é, hoje, muito actual, não somente em termos pessoais, mas na vida das nossas sociedades. A simplicidade escolhida livremente permite que os mais favorecidos resistam ao supérfluo e contribui para a luta contra a pobreza imposta aos mais desfavorecidos” (5).
E assim, pouco a pouco, compreenderemos que em “situações extremas” é possível uma condição humana mais humanizada!
grão de mostarda
(1) Irmão Aloïs, Carta de Taizé 2012 – Rumo a uma nova solidariedade
(2) ver Mateus 4, 1-11; Marcos 1, 12-13; Lucas 4, 1-13
(3) José Antonio Pagola, Entre conflictos y tentaciones. Ver: http://blogs.periodistadigital.com/buenas-noticias.php
(4) Irmão Roger, Deus só pode amar (Gráfica de Coimbra, 2004)
(5) Irmão Aloïs, Ousar acreditar – A celebração da fé em Taizé (Paulinas, 2012)
Foto: vitral da Igreja da Reconciliação, Taizé
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