domingo, 18 de novembro de 2012

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos, 

diante da interrogação: “Que sentido tem falar de esperança a quem momento para o outro ficou na mais negra escuridão e, como um náufrago, está atolado na crise sem vislumbrar uma tábua de salvação?”, Constantino Alves propõem-nos na reflexão semanal de ESCUTAR A VIDA, um caminhar “que resiste e recusa as fatalidades e determinismos” (ver ANEXO).

Responsável pela paróquia católica de Nossa Senhora da Conceição, em Setúbal, Constantino Alves partilha um quotidiano de “clamores do povo ou os gritos sufocados pelo medo e perder o tão pouco que resta”.

Com estima fraterna,

grão de mostarda


NAS ENCRUZILHADAS DA CRISE E DA ESPERANÇA

Que sentido tem falar de esperança a quem dum momento para o outro ficou na mais negra escuridão e, como um náufrago, está atolado na crise sem vislumbrar uma tábua de salvação? Se o Advento nos convida à esperança que pode isso significar no real e concreto das vidas do povo sofrido, desiludido e numa crescente dependência das incertezas e da insegurança? 

Dar uma janela ao futuro

Neste preciso momento em que escrevo, sou interrompido por uma mulher de 42 anos que me diz, com a voz embargada pela comoção: “Não tenho nada para comer, estou sem luz e água há mais de uma semana, ficaram de me contatar da Segurança Social para marcarem uma entrevista por causa do RSI (Rendimento Social de Inserção), mas já lá vão quinze dias…eu mato-me…!

Falar de esperança a esta pessoa que quer dizer? E lembro-me dum poema africano que dizia: “eu estava com fome e vós fostes rezar por mim, mas eu continuei com fome!”  

Há três escândalos inadmissíveis no nosso tempo em que o progresso e o desenvolvimento tecnológico nos maravilham e que não podemos nem devemos aceitar: a fome, o desemprego estrutural e as desigualdades sociais.

Compreender os tempos que vivemos

Os tempos que vivemos exigem profunda reflexão para compreendermos as causas e mecanismos profundos que nos conduziram a nós e a milhões de pessoas pelo mundo inteiro à exclusão social e à pobreza por causa do desemprego e da precariedade. 

Na base das profundas mudanças que estamos a viver está o surgimento e imposição progressiva dum modelo de desenvolvimento nas últimas décadas assente no neoliberalismo que sacraliza a iniciativa privada, exalta a concorrência e a competitividade e coloca como objetivo quase exclusivo, o lucro. E os seus arautos teóricos ou os donos do dinheiro reclama como condição para o seu êxito o afastamento da intervenção do Estado da esfera do económico e do social (veja-se a venda de tudo quanto é do domínio público, desde que lucrativo, a voragem das privatizações!) e a desregulamentação constante da legislação laboral, a recusa da contratação coletiva e o incremento de novas relações laborais!

Outrora os Profetas ajudavam o Povo de Deus a perceber as causas do seu cativeiro na Babilónia e a humilhação em que viviam, pelo abandono da Aliança, pelas infidelidades ao cumprimento dos mandamentos, pelo crescimento da injustiça e da violência sobre os mais desprotegidos, pela gestão e governo ruinoso exercido pelos reis e pelo esquecimento de Deus. As suas explicações eram acompanhadas de fortes apelos à conversão, à mudança de atitudes, à redescoberta dum estilo de vida e de laços sociais novos, e uma exortação à esperança. E lembravam as maravilhas dum Deus presente, próximo que nunca abandonaria o seu Povo.

E foi nessa purificação longa de mentalidades, atitudes e valores que o Povo pôde manter a sua esperança.

É urgente falar de esperança nas encruzilhadas da crise

Falar de esperança nas encruzilhadas da crise é imperioso e urgente. É preciso escutar os clamores do povo ou os gritos sufocados pelo medo e perder o tão pouco que resta. Dar valor, apoiar ou estimular a sua indignação. Celebrá-la!

Não podemos deixar sacrificar no altar do desemprego, da precariedade, da flexibilização sem limites, os direitos mais sagrados dos trabalhadores: o trabalho digno, com direitos e dignificante e cujos sacerdotes máximos, movidos pelo egoísmo, são os grandes grupos económicos e financeiros, servidos por uns acólitos políticos sem preparação técnica e desprovidos dos verdadeiros valores sociais e morais. O trabalho é estruturador e estruturante duma pessoa. Sem ele sentimo-nos dependentes, excluídos, arrumados e indefesos.

Há alternativas possíveis que relancem a humanidade, o país, no sentido dum desenvolvimento económico e social mais justo e solidário.

Os caminhos da História podem ser sempre alterados e abertos outros rumos com a conjugação dos esforços, das lutas, das indignações e da apresentação de propostas assentes em denominadores comuns, como a colocação do emprego no centro das preocupações políticas, a valorização e dignificação do trabalho humano, a justa repartição de rendimentos da atividade económica ou das transações do capital, a juventude e os estratos sociais mais vulneráveis, a ecologia e a paz!

Todos, todos… temos a obrigação moral de lutar contra as causas e causadores de tantos sofrimentos e humilhações.

Dar de comer a quem tem fome e lançar a mão ao arado

A solidariedade com os desempregados, com os mais pobres, com as vítimas da crise, incorpora diversas formas e componentes e nenhuma pode deixar de estar articulada com outra: ficar em discursos inflamados mais ou menos politizados e não ser empreendedor de formas organizativas concretas de apoiar os desempregados ao nível do apoio alimentar, roupa, rendas de casa, saúde e afeto (!), as palavras serão vazias, ocas e não passarão de mera propaganda ideológica. Mas ficar só pela chamada ação social direta, necessária e imprescindível relativamente às pessoas que têm fome e estão no limite da sobrevivência, isso não chega! Seria o mero assistencialismo, que não tocava as causas geradoras da pobreza e da fome. 

É importante termos uma visão histórica e percebermos como em séculos anteriores os operários recorreram a formas de solidariedade entre eles ao nível da satisfação da suas necessidades mais básicas e se articularem com outras instituições de beneficência ou solidariedade e perceberam que esses meios não estavam desligados duma luta mais profunda e transformadora. 

Não será este um desafio nos nossos tempos para todos, incluindo autarquias, igrejas, associações e os próprios sindicatos? Não deverá ser o sindicato o primeiro “colo” que o desempregado, fustigado pela dor e angústia deve encontrar? 

Mas já despontam os sinais de esperança que não se deixam afogar nem amordaçar!

Eles irrompem sobre a terra ressequida de sangue e suor, as ruas, as praças se enchem e milhões de portugueses, vestindo cores diferentes, já dizem: “Não”! “Basta!” Já se grita que há fogo na floresta e que não o podemos ignorar e, por isso, nem o medo, nem os senhores nos amordaçarão e calarão as nossas vozes e destruirão a esperança que nos resta! 

Neste tempo de Advento… quando o Profeta chegar

Neste tempo de Advento, se estas palavras pouco valerem, fique a certeza de que só nos deixando envolver na onda da caminhada que resiste e recusa as fatalidades e determinismos, viveremos a nossa Fé no Deus revelado em Jesus, libertador dos pobres e oprimidos (“creio no mundo que há-de vir”) e que muitos, muitos mais já estão a preparar o terreno dum amanhã que, num caminhar lento, tenaz, refletido e seguro, ou na surpresa duma madrugada, nos fará cantar de novo a esperança!

Constantino Alves
Padre de Setúbal, na paróquia católica de Nossa Senhora da Conceição



grão de mostarda






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