Caríssimas e caríssimos,
escutar a vida, a vida que trazemos dentro (e fora) de nós…
Escutar é certamente a arte que mais amabilidade exige dos nossos corações. O
pe. Henrique Scheepens alia hoje, à evocação do exemplo de um
seu companheiro missionário, o caso do Zeca, um imigrante que ele escutou até
partir, finalmente reconciliado consigo mesmo, para a sua terra... (ver ANEXO)
Fraternalmente,
grão de mostarda
Saber escutar… e
escutar o Zeca
Escutar a vida: faleceu um confrade com quase noventa e dois
anos. Foi um homem sem espalhafatos, fumando os seus cigarilhos e lendo
policiais de Simenon mas com uma sensibilidade muito especial para com pessoas
de idade e doentes: tranquilizava-as, mesmo aquelas que sofriam dum cancro.
Observei esta vida, escutei esta vida e aprendi com este estilo de vida.
Escutar a vida, fê-lo exemplarmente. Sempre teve muita dificuldade com as suas
homilias mas não com as pessoas. Foi grande na escuta.
Escutei eu a vida do Zeca, um imigrante que veio depois de
ter servido a tropa no seu país sem ter participado em guerras. Zeca deve ter
uns 50 anos. Deixou a mulher e 2 filhos na terra natal e não manteve contato
com eles. O seu trabalho foi na construção civil, vivia num bairro de lata até
a demolição realizada pela Câmara que, em 1993, recenseou os que nesse bairro
viviam, mas o Zeca não foi recenseado com a consequência de ser excluído do
direito a uma casa. Não sei porquê mas ia perdendo a cabeça, sofria de
alucinações: começou a falar aos aviões que passavam por cima dele, escrevia
mensagens que recebia deles e entregava-mas. As mensagens tinham a ver com
guerra, bombardeamentos, Russos, Alemães e Americanos, droga, presos, polícia
da zona, muitos perigos no meio disso tudo. Ele ficou sempre tranquilo, recebia
os amigos com quem bebia os seus copos na sua instalação, algo de alvenaria e
um telhado com chapas de zinco com plástico em cima para não chover dentro. Ao
todo abrangia 3,50 m por 2,7 metros sem janelas. Uma empresa tirou toneladas de
terra do terreno onde se encontrava; respeitaram-no, deixando-o em cima de uma
colina de 4 metros. Na encosta cresceram entretanto arbustos que agora quase
impedem ver as paredes e o telhado deste “habitat”. Vive de estacionamento de
carros, dois dias por semana; o dono de um bar dava-lhe comida assim como
outras pessoas. O centro social da paróquia ofereceu-lhe uma refeição por dia,
oportunidade de tomar banho e lavar a roupa mas nunca, no correr dos anos,
aceitou essa oferta.
Apareceu, num belo dia, um filho, bolseiro para estudar cá,
que o procurou durante bastante tempo e encontrou-o! O pai nunca me tinha
falado em filhos. Entrou em construção o mútuo afeto. A Câmara e a assistência
social procuraram uma resposta à situação. A comunidade cristã a que as
voluntárias e o “padre católico” pertencem, como Zeca sempre dizia, foram
abordados e participaram em duas reuniões de 2 horas com este pessoal todo sem
nenhum resultado. O Zeca negou saída dali e não lhe ofereceram casa.
Um telefonema de uma Associação, responsável pela Urbanização
da zona, alertou-nos: agiu e organizou o regresso à terra natal, em conversa
com o próprio, com o filho e com a embaixada. O Zeca regressará brevemente na
companhia do filho, à sua terra. Esta solução sempre foi vista como a melhor
mas nunca nenhuma entidade disponibilizou o pagamento das despesas. Essa
Associação paga tudo e garante, durante um ano, algum dinheiro
para que o Zeca não esteja sem nada no meio da família. Esperamos agora que o
homem possa encontrar o acolhimento que merece e que, para casos semelhantes
que são muitos, se possam encontrar respostas semelhantes.
Henrique Scheepens, padre da Congregação dos Sagrados Corações
e corresponsável da paróquia católica de S. Bartolomeu da Charneca (Lisboa)
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