segunda-feira, 24 de junho de 2013

ESCUTAR A VIDA



Caríssimas e caríssimos,

escutar a vida, a vida que trazemos dentro (e fora) de nós… Escutar é certamente a arte que mais amabilidade exige dos nossos corações. O pe. Henrique Scheepens alia hoje, à evocação do exemplo de um seu companheiro missionário, o caso do Zeca, um imigrante que ele escutou até partir, finalmente reconciliado consigo mesmo, para a sua terra... (ver ANEXO)

Fraternalmente,
grão de mostarda

Saber escutar… e escutar o Zeca





Escutar a vida: faleceu um confrade com quase noventa e dois anos. Foi um homem sem espalhafatos, fumando os seus cigarilhos e lendo policiais de Simenon mas com uma sensibilidade muito especial para com pessoas de idade e doentes: tranquilizava-as, mesmo aquelas que sofriam dum cancro. Observei esta vida, escutei esta vida e aprendi com este estilo de vida. Escutar a vida, fê-lo exemplarmente. Sempre teve muita dificuldade com as suas homilias mas não com as pessoas. Foi grande na escuta. 


Escutei eu a vida do Zeca, um imigrante que veio depois de ter servido a tropa no seu país sem ter participado em guerras. Zeca deve ter uns 50 anos. Deixou a mulher e 2 filhos na terra natal e não manteve contato com eles. O seu trabalho foi na construção civil, vivia num bairro de lata até a demolição realizada pela Câmara que, em 1993, recenseou os que nesse bairro viviam, mas o Zeca não foi recenseado com a consequência de ser excluído do direito a uma casa. Não sei porquê mas ia perdendo a cabeça, sofria de alucinações: começou a falar aos aviões que passavam por cima dele, escrevia mensagens que recebia deles e entregava-mas. As mensagens tinham a ver com guerra, bombardeamentos, Russos, Alemães e Americanos, droga, presos, polícia da zona, muitos perigos no meio disso tudo. Ele ficou sempre tranquilo, recebia os amigos com quem bebia os seus copos na sua instalação, algo de alvenaria e um telhado com chapas de zinco com plástico em cima para não chover dentro. Ao todo abrangia 3,50 m por 2,7 metros sem janelas. Uma empresa tirou toneladas de terra do terreno onde se encontrava; respeitaram-no, deixando-o em cima de uma colina de 4 metros. Na encosta cresceram entretanto arbustos que agora quase impedem ver as paredes e o telhado deste “habitat”. Vive de estacionamento de carros, dois dias por semana; o dono de um bar dava-lhe comida assim como outras pessoas. O centro social da paróquia ofereceu-lhe uma refeição por dia, oportunidade de tomar banho e lavar a roupa mas nunca, no correr dos anos, aceitou essa oferta. 


Apareceu, num belo dia, um filho, bolseiro para estudar cá, que o procurou durante bastante tempo e encontrou-o! O pai nunca me tinha falado em filhos. Entrou em construção o mútuo afeto. A Câmara e a assistência social procuraram uma resposta à situação. A comunidade cristã a que as voluntárias e o “padre católico” pertencem, como Zeca sempre dizia, foram abordados e participaram em duas reuniões de 2 horas com este pessoal todo sem nenhum resultado. O Zeca negou saída dali e não lhe ofereceram casa.


Um telefonema de uma Associação, responsável pela Urbanização da zona, alertou-nos: agiu e organizou o regresso à terra natal, em conversa com o próprio, com o filho e com a embaixada. O Zeca regressará brevemente na companhia do filho, à sua terra. Esta solução sempre foi vista como a melhor mas nunca nenhuma entidade disponibilizou o pagamento das despesas. Essa Associação paga tudo e garante, durante um ano, algum dinheiro para que o Zeca não esteja sem nada no meio da família. Esperamos agora que o homem possa encontrar o acolhimento que merece e que, para casos semelhantes que são muitos, se possam encontrar respostas semelhantes.






Henrique Scheepens, padre da Congregação dos Sagrados Corações e corresponsável da paróquia católica de S. Bartolomeu da Charneca (Lisboa)

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