sábado, 19 de janeiro de 2013

ESPERANÇA: CAMINHO E HORIZONTE



Caríssimas e caríssimos,

Quais os nomes da Esperança? Para os apreendermos e mastigarmos, diz-nos Luísa Alvim, “é preciso erguermo-nos da tenebrosa profundidade e lembrarmo-nos de voo possível das aves do céu que nos elevam a ver os lírios” (ver Mateus 6, 24-34). O repto do projecto evangélico remete-nos para os gritos dos muitos que estão no fundo do poço…

E, em cada gesto acolhedor, em cada palavra de ternura, será possível ir descortinando “o nome da esperança”? (ver ANEXO)

Com estima fraterna,

grão de mostarda


Luta contra a desistência
 
Estimada Luísa,

A tua carta insiste na importância do sentido da esperança; a palavra, e mais do que a palavra, essa perceção repete-se como um refrão quando ouvimos, já não a sinfonia de um mundo equilibrado e fraternal, mas os ruídos e os estrondos da barbárie que vai acontecendo perto e também longe de nós (se é que hoje ainda podemos falar de lonjura): as guerras transformadas em tragédia/espetáculo, que todos os dias nos entram em casa pelas novas tecnologias não são a expressão completa da barbárie, sabendo que há outras igualmente cruéis que não obtiveram lugar na programação da comunicação social. Se a guerra civil na Síria nos choca, e com toda a razão, o que se passa na Republica Democrática do Congo só eventualmente merecerá uma referência menos relevante do que a má disposição de uma estrela do desporto. E, no entanto, temos as mortes inocentes provocadas pela guerrilha gerada por cumplicidades no interior e alimentada, do exterior, pelos senhores do dinheiro que continuam a roubar as riquezas naturais, como é o caso do coltan – o “ouro azul”, já responsável por mais de quatro milhões de mortos; responsável ainda porque continua a provocar uma das taxas mais baixas de esperança de vida, a explorar o trabalho infantil, com a negação do acesso ao ensino mais básico, com as populações completamente desprotegidas e entregues aos humores dos soldados que matam, roubam e violam numa total impunidade; responsável pelo abandono forçado das terras, a par de uma agressão constante e sem retorno ao ambiente. O mundo não vê nem quer ver. Aliás como é que iríamos manter o nosso nível de vida e de consumo sem as matérias primas que nos vão proporcionar, por exemplo, os telemóveis e toda a parafernália dos equipamentos eletrónicos?

Mas olhando para mais perto de nós, contemplando tanta medida e tanta atitude sem sentido que levam as pessoas a sentirem-se como que paralisadas quando olham em frente, sinto-me um pouco naquela situação que referias de Etty Hillesum. Tenho o livro “Uma vida transformada” (1) em frente de mim, com o seu rosto na capa e por baixo aquela imagem que se tornou um ícone do Holocausto, a via férrea de Auschwitz-Birkenau, apontando e atravessando a frontaria da entrada do campo, com aquele portão aberto para uma viagem sem retorno. Caminhei ainda há poucas semanas nessa linha, atravessei o arco e fui “mastigando” o que ali de trágico, desumano e insensato se passou; mas também fui pensando como no meio da mais profunda desumanidade pode surgir o que de mais nobre tem a pessoa humana: ultrapassar os seus limites. Essa foi a experiência de Etty; quando finalmente deixou o Campo de Westerbork na Holanda, naquele comboio atulhado de gente transportada como animais, numa viagem sem regresso, ela atirou, através duma fresta do comboio, um postal para uma amiga, em que escrevia: “Partimos do campo a cantar”. Três dias depois chegava a Auschwitz, onde poucas semanas a seguir sofreria a sorte de milhões no extermínio provocado por quem tinha perdido o melhor de si mesmo, o melhor da humanidade. Como escreve o padre Tolentino Mendonça na capa do livro “O grande nascimento dá-se na alma, quando se aceita que a única coisa que nos é pedida é que sejamos.” Esse é o manjar que pode alimentar a esperança, que precisa de ser “mastigada”, saboreada, sem impaciências, de modo que possa ir transformando a pessoa.

E para concluir, uma referência a essa luta contra a desistência: no meio do bairro de barracas da minha paróquia (*), que há já perto de 15 anos esperávamos ver terminado, mas onde ainda habitam pessoas em condições tão degradantes como então, tendo terminado o projeto oficial que ia dando alguma dignidade aos seus moradores, um grupo de voluntários quer dar continuidade a uma presença fraterna, olhando sobretudo para as numerosas crianças que sem isso ficariam marginalizadas e privadas daquele mínimo de condições a que hoje todos podem aspirar. Quando não há dinheiro, subsídios e apoios, mas há pessoas, então há que puxar pela imaginação. Foi aí que descobrimos o Menino do presépio. As luzes natalícias apagaram-se; vamos tentar acender outras luzinhas. É o exemplo de Etty, que escreve: “Eu tento olhar as coisas de frente, até os piores crimes, a fim de descobrir o pequeno e nu ser humano no meio do monstruoso naufrágio provocado pelos atos sem sentido do homem”.

Com esperança,

Valentim

(1)    Patrick Woodhouse, “Etty Hillesum – uma vida transformada”, Paulinas, 2011
(*) Paróquia de S. Pedro do Prior Velho, Sacavém
Foto: via férrea de Auschwitz-Birkenau, da capa do livro “Etty Hillesum – uma vida transformada”

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