Caríssimas e
caríssimos,
Quais os nomes da Esperança? Para
os apreendermos e mastigarmos, diz-nos Luísa Alvim, “é preciso erguermo-nos da
tenebrosa profundidade e lembrarmo-nos de voo possível das aves do céu que nos
elevam a ver os lírios” (ver Mateus 6, 24-34). O repto do projecto evangélico
remete-nos para os gritos dos muitos que estão no fundo do poço…
E, em cada gesto acolhedor, em cada
palavra de ternura, será possível ir descortinando “o nome da esperança”? (ver ANEXO)
Com estima fraterna,
grão
de mostarda
Luta contra a desistência
Estimada Luísa,
A tua carta insiste na
importância do sentido da esperança; a palavra, e mais do que a palavra, essa
perceção repete-se como um refrão quando ouvimos, já não a sinfonia de um mundo
equilibrado e fraternal, mas os ruídos e os estrondos da barbárie que vai
acontecendo perto e também longe de nós (se é que hoje ainda podemos falar de
lonjura): as guerras transformadas em tragédia/espetáculo, que todos os dias
nos entram em casa pelas novas tecnologias não são a expressão completa da
barbárie, sabendo que há outras igualmente cruéis que não obtiveram lugar na
programação da comunicação social. Se a guerra civil na Síria nos choca, e com
toda a razão, o que se passa na Republica Democrática do Congo só eventualmente
merecerá uma referência menos relevante do que a má disposição de uma estrela
do desporto. E, no entanto, temos as mortes inocentes provocadas pela guerrilha
gerada por cumplicidades no interior e alimentada, do exterior, pelos senhores
do dinheiro que continuam a roubar as riquezas naturais, como é o caso do
coltan – o “ouro azul”, já responsável por mais de quatro milhões de mortos;
responsável ainda porque continua a provocar uma das taxas mais baixas de
esperança de vida, a explorar o trabalho infantil, com a negação do acesso ao
ensino mais básico, com as populações completamente desprotegidas e entregues
aos humores dos soldados que matam, roubam e violam numa total impunidade;
responsável pelo abandono forçado das terras, a par de uma agressão constante e
sem retorno ao ambiente. O mundo não vê nem quer ver. Aliás como é que iríamos
manter o nosso nível de vida e de consumo sem as matérias primas que nos vão
proporcionar, por exemplo, os telemóveis e toda a parafernália dos equipamentos
eletrónicos?
Mas olhando para mais perto de
nós, contemplando tanta medida e tanta atitude sem sentido que levam as pessoas
a sentirem-se como que paralisadas quando olham em frente, sinto-me um pouco
naquela situação que referias de Etty Hillesum. Tenho o livro “Uma vida
transformada” (1) em frente de mim, com o seu rosto na capa e por baixo aquela
imagem que se tornou um ícone do Holocausto, a via férrea de
Auschwitz-Birkenau, apontando e atravessando a frontaria da entrada do campo,
com aquele portão aberto para uma viagem sem retorno. Caminhei ainda há poucas
semanas nessa linha, atravessei o arco e fui “mastigando” o que ali de trágico,
desumano e insensato se passou; mas também fui pensando como no meio da mais
profunda desumanidade pode surgir o que de mais nobre tem a pessoa humana:
ultrapassar os seus limites. Essa foi a experiência de Etty; quando finalmente
deixou o Campo de Westerbork na Holanda, naquele comboio atulhado de gente
transportada como animais, numa viagem sem regresso, ela atirou, através duma
fresta do comboio, um postal para uma amiga, em que escrevia: “Partimos do
campo a cantar”. Três dias depois chegava a Auschwitz, onde poucas semanas a
seguir sofreria a sorte de milhões no extermínio provocado por quem tinha
perdido o melhor de si mesmo, o melhor da humanidade. Como escreve o padre
Tolentino Mendonça na capa do livro “O grande nascimento dá-se na alma, quando
se aceita que a única coisa que nos é pedida é que sejamos.” Esse é o manjar
que pode alimentar a esperança, que precisa de ser “mastigada”, saboreada, sem
impaciências, de modo que possa ir transformando a pessoa.
E para concluir, uma referência a
essa luta contra a desistência: no meio do bairro de barracas da minha paróquia
(*), que há já perto de 15 anos esperávamos ver terminado, mas onde ainda
habitam pessoas em condições tão degradantes como então, tendo terminado o
projeto oficial que ia dando alguma dignidade aos seus moradores, um grupo de
voluntários quer dar continuidade a uma presença fraterna, olhando sobretudo para
as numerosas crianças que sem isso ficariam marginalizadas e privadas daquele
mínimo de condições a que hoje todos podem aspirar. Quando não há dinheiro,
subsídios e apoios, mas há pessoas, então há que puxar pela imaginação. Foi aí
que descobrimos o Menino do presépio. As luzes natalícias apagaram-se; vamos
tentar acender outras luzinhas. É o exemplo de Etty, que escreve: “Eu tento
olhar as coisas de frente, até os piores crimes, a fim de descobrir o pequeno e
nu ser humano no meio do monstruoso naufrágio provocado pelos atos sem sentido
do homem”.
Com esperança,
Valentim
(1) Patrick
Woodhouse, “Etty Hillesum – uma vida
transformada”, Paulinas, 2011
(*) Paróquia
de S. Pedro do Prior Velho, Sacavém
Foto: via férrea de Auschwitz-Birkenau,
da capa do livro “Etty Hillesum – uma
vida transformada”
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