sábado, 28 de janeiro de 2012

DE QUE MUNDO SOMOS?

Caríssimas e caríssimos,

Perante o tempo presente – de subjugações, impérios de mentira e de desrespeito pela dignidade humana –, o pe. Valentim Gonçalves defende que “o importante dos nossos questionamentos deveria ser: o que pode ajudar a ultrapassar situações de carência em áreas fundamentais em que se encontram envolvidas tantas pessoas, muitas das quais já perderam qualquer margem de manobra para gerir as suas vidas, o que se traduz na perda de um dos valores mais fundamentais, que é a liberdade”?.

Na sua resposta à carta de Luísa Alvim (ver ANEXO), Valentim Gonçalves, interroga o porquê da falta de discernimento para uma busca de caminho comum, distante dos interesses mesquinhos do eleitoralismo e dos privilégios corporativos. Uma decisão assumida, contrária à de actual indiferença, só acontece(rá) “quando as pessoas vivem a cidadania como atitude comprometida com o viver em comum e não como peões jogados apenas em momentos de eleições”. Que falta, então, realizar? “Colocar a pessoa no coração do sistema por contraposição aos interesses económicos, utilitários e particulares”, adverte o pe. Valentim Gonçalves.
Com estima fraterna,

grão de mostarda

Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito --, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.

Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos.

Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, ainda desenvolve trabalho na antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.

Carta de Valentim Gonçalves para Luísa Alvim

Estimada Luísa,

A tua carta lança-nos para dentro de uma situação incómoda, porque dolorosa para tanta gente e sobretudo para os mais fragilizados; dolorosa ainda porque não se vê uma via clara para ser ultrapassada. Essa complexidade está bem patente nas atitudes e no discurso das pessoas, muito especialmente dos políticos e das organizações de cariz corporativo. Torna-se difícil vislumbrar a fronteira entre o viável e o meramente ideológico; entre o solidário e o demagógico; entre a defesa do justo e o interesse egoísta travestido de direitos adquiridos. Irrita-me, como ao comum dos mortais, o cinismo de alguns discursos cujo registo muda consoante a posição dos seus autores no tabuleiro do poder: aquilo que ontem defendiam hoje constitui arma de arremesso contra os que estão no outro lado do jogo político; ficamos com a convicção de que aquilo não passa de uma luta acalorada, não por causa do que interessa verdadeiramente à comunidade, mas sim à conquista ou manutenção de qualquer privilégio.


Assim julgo que o importante dos nossos questionamentos deveria ser: o que pode ajudar a ultrapassar situações de carência em áreas fundamentais em que se encontram envolvidas tantas pessoas, muitas das quais já perderam qualquer margem de manobra para gerir as suas vidas, o que se traduz na perda de um dos valores mais fundamentais, que é a liberdade. Não me preocupam os constrangimentos às férias no estrangeiro, ou mesmo entre nós, nem as dificuldades em substituir o carro dentro daquele período a que o mercado nos foi habituando, nem tantos outros esforços legítimos para uma vida mais cómoda ou simplesmente para criar ou manter uma imagem diante dos outros. Preocupa-me sim quando, por exemplo, a pessoa não pode alimentar-se convenientemente, ou vai deixando de ter acesso aos cuidados de saúde, quando se vê descer o nível do ensino e tudo isso num efeito bola de neve que vai degradando a qualidade de vida das pessoas e de toda a sociedade.

É verdade que a crispação social tem sido contida. Mas estou certo de que seria muito mais fácil encarar os problemas e despertar sinergias para um reconstruir de projectos pessoais ou colectivos se a crispação ideológica fosse mais verdadeira, menos cínica e honestamente crítica, demonstrando capacidade de fazer o discernimento entre o que ajuda e o que complica. Mas isto só acontece quando as pessoas vivem a cidadania como atitude comprometida com o viver em comum e não como peões jogados apenas em momentos de eleições; porque esta vivência ainda é muito rudimentar, não se acredita nos políticos, nem eles estarão tão interessados nisso, uma vez que, a tal acontecer, há erros que não seria possível repetir sem a correspondente penalização, promessas que não poderiam ficar em palavras sem sentido, programas que seriam avaliados, e representantes do povo que o comprovavam com a sua proximidade, com a proclamada igualdade que afastaria os privilégios e criaria uma sociedade com mais justiça e cada vez mais transformadora de uma sociedade de senhores e de servos numa outra de cidadãos com a mesma dignidade e com idênticas oportunidades.

Isto nos conduz para o cerne do documento da Comissão Nacional Justiça e Paz CNJP (1) e que consiste numa mudança de paradigma no que concerne à organização da sociedade e ao exercício do poder: colocar a pessoa no coração do sistema por contraposição aos interesses económicos, utilitários e particulares. Por isso a tua pergunta: “que esforço têm feito os católicos para transformar o sistema económico, tanto em teoria como em experiências no terreno?”

Neste campo penso que tem havido muita religião e pouca fé; muita religião ligada ao dever e pouco ligada ao melhor legado que Jesus nos deixou e que foi a sua proximidade e a sua preocupação pela vida/felicidade dos outros, nomeadamente dos lançados para a margem. No momento presente, o afastar-se das pessoas e dos seus problemas e angústias, faz repetir a cena do sacerdote e do levita que, na estrada de Jericó, viraram a cara ao homem maltratado e abandonado pelos bandidos, e preferiram seguir o seu caminho preocupados antes de mais com os deveres ligados ao culto a que estavam vinculados.

(1) Documento referido na carta de Luísa Alvim, publicada no passado dia 6, e disponível em:
 http://www.portal.ecclesia.pt/instituicao/ktml2/files/61/Vencer%20a%20crise.pdf

Fraternalmente

Valentim Gonçalves
 

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