Caríssimas e caríssimos,
O que é a “normalidade” social, como nos habituamos a ela? Quando tudo parece congregar-se para que a indiferença se sobreponha às dores humanas, que caminhos seguem os nossos corações? A morte de idosos, abandonados em suas casas, e a ignorância de um dos maiores crimes recentes contra a Humanidade – o campo nazi de Auschwitz – evocam-nos a atitude de Jesus perante as atrocidades de Herodes cometidas contras os mais indefesos... (ver ANEXO).
Na semana em que no cabe escrever a reflexão ESCUTAR A VIDA, procuramos encontrar caminhos que contrariem a “normalidade” da indiferença, porque o quotidiano nos vai dizendo que não são necessários grandes empreendimentos, para possibilitar “tempos de humanização”.
Fraternalmente,
grão de mostarda
A indiferença da “normalidade”
“Não aceitem o habitual como coisa natural,
pois em tempos de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar”
Bertold Brecht
Até ontem, e somente durante este mês de Janeiro, foram mais de 10 os idosos que morreram sós em suas casas. E isto somente em Lisboa... O que as notícias reforçam é o facto de essas pessoas viverem desacompanhadas, solitárias, sem que se lhes conheça alguém que periodicamente as visite. São pessoas deixadas à sua sorte, à sua fragilidade física e interior, à sua solidão. E escutarmos estas notícias tornou-se recorrente, como as mortes em África devido à fome.
Também esta semana, a revista Stern dava conta que, dos jovens alemães entre os 18 e os 29 anos, 21% não sabe que Auschwitz foi um campo de extermínio nazi. Fernando Alves acordou-nos para este facto na quinta-feira passada, na sua rubrica SINAIS, na TSF. E, de acordo com aquela revista alemã, 31% dos jovens não consegue mesmo indicar a localização de Auschwitz no mapa... A sondagem surgiu no dia internacional em memória das vítimas do genocídio de judeus na Europa pelos nazis, que assinala a libertação daquele campo pelo Exército Vermelho, da antiga URSS.
O esquecimento. O esquecimento de que cada uma e cada um de nós é parte da humanidade... O esquecimento de que vivemos dependentes uns dos outros – sobrevivemos como seres, porque alguém antes já construíra o mundo da nossa subsistência, que encontrámos quando nascemos; sobrevivemos enquanto colectivo, porque alguém preservou os saberes, os conhecimentos, as memórias que nos tornam uma família universal e permitem avançar na construção da nossa humanização.
Podemos afirmar para nós próprios: são poucos. Não são assim tantos os idosos que morreram. Afinal, até estamos no Inverno, um tempo mais rigoroso para quem já tem alguma idade. Também não são muitos os jovens alemães que desconhecem o que, “ontem”, aconteceu a muitos dos seus avós. Afinal, 21% por cento dos “miúdos” com idade compreendidas entre os 18 e os 29 anos não podem ser olhados como uma catástrofe de inconsciência cívica.
Quando o evangelho de Marcos (1, 14-20) nos dá conta de que Herodes Antipas encarcerou João (o judeu que no rio Jordão anunciava o perdão dos pecados por meio do baptismo) por incomodar a sua política de repressão e a sua vida de luxo e usurpação, refere que, naquela ocasião, Jesus – que havia seguido João – não se escondeu, com receio de também vir a ser detido (1).
Jesus não se escondeu. “Não se ocultou no deserto. Tão pouco se refugiou entre os Seus familiares de Nazaré”, anota José Antonio Pagola, sublinhando que, não se conformando com o pensamento dominante, Jesus, em resposta ao apelo interior à bondade de coração, anunciou “Deus como algo novo e bom”, abandonando assim a atitude de João, que proclamava um Deus castigador, um futuro negro – “O machado já se encontra à raiz das árvores...” (Lucas 3,9). “Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos anunciando algo que nenhum profeta se tinha atrevido a declarar: ‘Já está aqui Deus, com a Sua força criadora de justiça, tratando de reinar entre nós’. Jesus experimenta Deus como uma Presença boa e amistosa que procura abrir caminho entre nós para humanizar a nossa vida”, salienta José Antonio Pagola.
Fatalismo e acomodamento não coincidiam com o modo de Jesus entender a vida, com a sua fé no Deus da Vida. “Por isso, toda a vida de Jesus é um apelo à esperança. Há alternativa. Não é verdade que a história tenha que discorrer pelos caminhos de injustiça que lhe traçam os poderosos da terra. É possível um mundo mais justo e fraterno. Podemos modificar a trajectória da história”, como escreve Pagola.
Aquelas duas notícias, do esquecimento do campo nazi de Auschwitz e da morte por abandono dos idosos, não podem constituir um “muro” que nos leve a integrar no nosso interior um clima de indiferença, de acomodamento a uma “normalidade”. Apesar do alheamento, é possível abrir caminhos de confiança, de confiança nas possibilidades humanas que levamos no mais íntimo dos nossos corações.
Não são necessários grandes empreendimentos, para possibilitar “espaços humanos”, “tempos de humanização”, para que se torne possível introduzir no mundo um ambiente de confiança. E se “a confiança não é uma ingenuidade cega”, como recorda o irmão Alois, prior de Taizé, também é verdade que, se acreditarmos que o desencanto não pode tomar conta do mundo, então sentiremos que “todos os dias somos chamados a refazer o caminho que vai da inquietude à confiança” (2). Então, a nossa busca conduzir-nos-á a caminhos de transformação interior e de atitude ética, capazes de não consentir mais como “normalidade” notícias como aquelas.
grão de mostarda
(1) O teólogo espanhol José Antonio Pagola ao comentar aquele relato de Marcos (ver “Outro mundo es posible” em: http://eclesalia.wordpress.com/2012/01/18/otro-mundo-es-posible) diz que Jesus iniciou, então, uma peregrinação por toda a Galileia anunciando “uma mensagem original e surpreendente” que pretendia levar os seus conterrâneos a tomar consciência de uma situação de “normalidade” – o ambiente de corrupção e de submissão através de um sofisticado sistema de impostos e de subjugação política e militar, apoiada por Roma, a que eram submetidos por Herodes os seus conterrâneos, aliado a uma degradação religiosa, por parte das elites do templo de Jerusalém, que viviam protegidas pelo poder político.
(2) CARTA DE TAIZÉ – Rumo a uma nova solidariedade (2012).
Foto: Crianças em Auschwitz - Fonte: news.bbc.co.uk © Getty Images
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