Caríssimas e caríssimos,
“A dimensão da eternidade é fundamental para ultrapassar os nossos limites, para dar luz aos nossos sonhos, para motivar-nos a viver e agir com um sentido mais amplo, mais abrangente, mais solidário com os outros e com a própria natureza que é a casa de todos”.
O pe. Valentim fazendo eco da última carta de Luísa Alvim (1), e perante o cortejo de sofrimento da vida de alguns, pergunta-se pela nossa dimensão de eternidade (ver ANEXO). É a consistência e as motivações do nosso agir que estão em causa. E muitos são os exemplos do que já poderia ser alterado, caso existisse bom senso na organização social pública e empresarial. O pe. Valentim refere alguns...
O ser humano, conclui, só se torna pessoa quando ultrapassar os limites estreitos “do meramente biológico, sensível e momentâneo”.
(1)
Publicada a 2 de Maio
Fraternalmente,
grão de mostarda
grão de mostarda
Luísa
Alvim, cristã empenhada na paróquia católica de S. Victor, em Braga – os seus
“diários” da catequese no Facebook constituem verdadeiras parábolas sobre o
Amor Infinito -, é também membro do Metanoia – movimento de profissionais
católicos. Técnica superior (área de Biblioteca e Documentação), na Câmara
Municipal de Vila Nova de Famalicão – actualmente a trabalhar na Casa de Camilo
- Museu e Centro e Estudos –, diz-se uma “sonhadora do impossível”.
Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, dedica-se também à comunidade da antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.
Valentim Gonçalves é pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua constituição como paróquia, em Outubro de 1999. Porém, a população do Prior Velho (concelho de Loures) já conhece este missionário do Verbo Divino desde há duas décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra – bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos. Vice-provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos Institutos Religiosos, dedica-se também à comunidade da antiga Quinta do Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma imensa população de imigrantes africanos.
Estimada Luísa,
No meio dos ecos pascais percetíveis na tua carta fixei-me na
expressão “colocar no coração dos outros a dimensão da eternidade”. Quem viveu
em tempos em que a esperança era apresentada “sobre as nuvens”, como que em contraposição
ao que era do “mundo”, sente uma primeira reação contra essa visão distorcida;
mas, ponderando um pouco mais, logo se é conduzido para a conclusão de que a
dimensão da eternidade é o elemento mais fundamental e fundante para quem não
se resigna à dimensão do meramente biológico, sensível e momentâneo. A pessoa
só o é enquanto ultrapassar esses estreitos limites para se lançar nos
horizontes sem fim daquilo que Agostinho de Hipona experienciava ao escrever:
“Criaste-nos para Vós e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em
Vós”.
A crise presente lança-nos de cabeça para o turbilhão das limitações pessoais, interiores, morais, mas também coletivas, sociais e políticas. Deixa-nos como que em frente de uma porta fechada na muralha, impedindo de ver o que lá dentro se passa, deixando apenas livre a imaginação, o desejo e os sonhos para criarem o que gostaríamos de encontrar. Esses sonhos vão relativizando o que temos diante de nós e que são incapazes de encherem as nossas medidas de felicidade. Por isso a crise, com todo o cortejo de sofrimento que acarreta para a vida de alguns, não pode nem levar-nos a dizer que não é connosco e que cada um se defenda, nem sequer a resignarmo-nos no presente à espera de que algo possa mudar. É uma oportunidade e um desafio que nos obrigam a um realismo sólido, discernindo a verdade da ilusão, a desculpa da irresponsabilidade, a vaidade (vanidade) da realidade.
Quando entro numa grande superfície
comercial gosto, por um lado, de sentir a vida e as coisas boas que ela nos
traz, por outro, interrogo-me para que é que serve a maior parte das coisas que
estão ali incitando o nosso desejo natural de ter. Quando, em tempo de fome
para tanta gente neste país, penso naquilo que acabo de escutar e ver na televisão
de que cerca de trinta por cento da comida dos restaurantes vai parar ao
contentor do lixo, ou quando na mesma reportagem nos é demonstrado que só numa
empresa de comercialização de produtos hortícolas podem num só dia ser lançadas
para o contentor toneladas de batatas, ou ainda, quando também nos é
demonstrado que em companhias de aviação acontece que dez por cento da comida
preparada e devidamente acondicionada é obrigatoriamente (por lei) lançada ao
lixo, fico chocado com a lógica que conduz esta sociedade, que só pode ser
míope e interiormente subdesenvolvida, ainda que por trás
dos vidros esfumados das sedes das grandes empresas funcione uma máquina
poderosa capaz de esmagar milhões de seres humanos, todos iguais em dignidade e
também na sua pequenez. Esses cérebros iluminados e ferozes dentro de um breve
tempo estarão reduzidos à condição irrefutável da igualdade, quando se
concretizar aquilo que o salmo diz “são como a erva do campo que de manhã está
verde e à tarde já está seca”. A dimensão da eternidade é fundamental para
ultrapassar os nossos limites, para dar luz aos nossos sonhos, para motivar-nos
a viver e agir com um sentido mais amplo, mais abrangente, mais solidário com
os outros e com a própria natureza que é a casa de todos. Não sendo a favor do
igualitarismo, que quer obrigar a ser igual o que é diferente, não me resigno
porém com um sistema que vai criando um fosso cada vez maior entre os cidadãos,
como nestes dias veio ao de cima na opinião pública a propósito do fosso entre
as remunerações dos gestores das grandes empresas e seus empregados; fosso
tanto maior quanto maior é a pobreza do país. Não ver pode ser uma limitação da
natureza; não querer ver é uma ofensa à dignidade e à responsabilidade da
própria pessoa.
Que a luz pascal nos ilumine nas trevas desta confusão.
Fraternalmente,
Valentim
Ilustração: Bezerro
de ouro - Nicolas Poussin, 1631, National Gallery, Londres
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