sábado, 5 de maio de 2012

ESCUTAR A VIDA

Caríssimas e caríssimos,

Um coração sensível  e a simplicidade de vida permitem ter uma atitude mais despojada com a própria vida e com aqueles que connosco se cruzam. O exemplo que agora Paulo França evoca dos seus pais é um estímulo a recuperarmos modelos solidários de viver. 

“Com o passar dos anos, percebo que o que norteava os meus pais não era sobretudo o dinheiro. Eles tinham a capacidade de ser compassivos, de se porem no lugar de quem vinha de longe, da solidão que sentia e do acolhimento humano que necessitava”. Estas palavras fazem eco do ambiente humanizador que Paulo França aprendeu na infância... É assim que o nosso coração se vai construindo.

Fraternalmente,

grão de mostarda

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Nunca vivi uma época como a que estamos a viver atualmente

Lembro-me de na minha infância (ali por volta dos anos 70 até ao 25 de abril de 74) de a minha mãe nos exortar a comer mais pão nas refeições para encher o estômago e assim enganá-lo devido ao “conduto” (expressão popular que significava alimento posto no prato) não ser muito. Nesse tempo, não havia jantar, comiam-se os restos do almoço, se os havia ou comia-se sopa e pão com queijo. E isto era mesmo assim, só aos fins de semana e feriados. A exceção era feita no Natal ou no Fim de Ano. Este modus vivendi estendeu-se até aos anos 90, não tendo a “revolução de abril” trazido alguma mudança nesse sentido. Nunca nos queixámos disso. Sabíamos que havia casas (da nossa família) que tinham o hábito de fazer jantar sempre. Também sabíamos que quem podia fazer isso tinha mais dinheiro e por isso podia gastar mais.

As mudanças que foram sendo feitas no fim do regime fascista e no pós-revolução não tiveram grande impacto na minha família. Refiro-me aos aumentos salariais, feitos gradualmente nos anos subsequentes à revolução, bem como a atribuição dos subsídios de férias e de Natal.

Recordo-me do fascínio e da alegria dos meus irmãos mais velhos, que viram os seus salários serem aumentados exponencialmente ao longo do tempo. Graças a estes meus irmãos, pudemos ter os manuais da escola, porque o meu pai não os podia comprar. Evidentemente, isso permitiu um maior poder aquisitivo, mas só me lembro de ter havido algum exagero nas prendas de Natal por volta da década de 90, altura em que se instalou um instinto bélico de troca de prendas a ver quem podia gastar mais, como se a bondade ou a partilha fossem isso.

Recordo-me que nunca tive o privilégio de ter um quarto de dormir só para mim. Partilhei sempre quarto e cama com outros irmãos. A certa altura, por volta da década de 80, os meus pais decidiram passar a alugar dois ou três quartos a hóspedes. Isto deveu-se às dificuldades em pagar as contas. Tanto quanto me lembro, era um preço justo e inferior ao preço de mercado, tendo em conta ainda o facto de ser sempre servido aos hóspedes pequeno almoço completo, banho à discrição e acesso à sala para ver televisão. Não havia, portanto, serventia. A roupa de cama era toda fornecida pelos meus pais, bem como as toalhas de rosto e banho, a limpeza dos quartos era sempre garantida por nós também.

Uma ocasião, tivemos uma jovem oficial de justiça que ficou colocada na comarca de Ponta Delgada. Esta jovem sentia-se deslocada, só e com grande dificuldade de adaptação a um meio estranho, pequeno e isolado. A Maria, seu nome, aproximava-se da cozinha aos finais de semana, e ao jantar. Percebemos que para além de estranhar a distância da sua família, andava também perdida e sem saber bem onde fazer as refeições. Adotamo-la para a mesa, todos os dias, nos passeios em família. Partilhámos com ela a nossa vida quotidiana. Minha mãe não teve coragem de lhe cobrar as refeições, por saber que não era mais uma “boca” que nos levaria à desgraça.

Fomos recebendo outros hóspedes e a quem nós tratámos da mesma maneira. Todos ficaram amigos, enviando postais e mesmo alguns telefonando regularmente das diversas regiões de Portugal continental, das outras ilhas do arquipélago, da Alemanha, França (os turistas que acorriam aos Açores eram sobretudo desses países nas décadas de 80/90). Viveu-se uma verdadeira partilha multicultural e humana. Muitos deles regressaram e os que não o fizeram mantiveram-se em contato regular sobretudo nas datas mais simbólicas. Hoje, perdemos o rasto dessa gente. Com o desaparecimento dos meus pais, deixámos de viver nessa casa e eram eles quem articulava normalmente com aquela gente. Felizmente, hoje restam ainda muitas fotos de festas de família em que essa gente lá está perfeitamente integrada nas nossas rotinas.

Quando saí de casa e precisei de viver em quartos alugados (na década de 90), percebi a diferença que havia nos preços e no trato dos senhorios em relação aos hóspedes. Percebi que o mais importante para essa gente, que me alugou quartos, era o dinheiro e sobretudo o dinheiro. Experimentei situações em que eu próprio tive de comprar roupa de cama e de pagar mais, se precisasse de lavar a roupa. Fornecimento de toalhas de banho ou de pequeno almoço nunca conheci nos quartos que aluguei em Lisboa e na grande Lisboa. Passei por lugares em que raramente era feita a limpeza dos quartos. Fiquei mesmo chocado com a prática desumana que os senhorios tinham na maneira como recebiam os hóspedes. Só conheci um caso de um senhorio que passava recibo pelo arrendamento de quarto, mas também esse não fornecia a roupa de cama, nem as toalhas de banho, muito menos o pequeno almoço. Esta renda dizia respeito a um quarto que era o resultado da subdivisão em contraplacado do que fora um só quarto originalmente. Imagine-se o que se pratica em relação ao aluguer de quartos a estudantes e sobretudo a imigrantes por este país fora.

Hoje, com o passar dos anos, percebo que o que norteava os meus pais não era sobretudo o dinheiro. Eles tinham a capacidade de ser compassivos, de se porem no lugar de quem vinha de longe, da solidão que sentia e do acolhimento humano que necessitava. Lembro-me de, muitas vezes, minha mãe me dizer «olhem, não demorem muito na casa de banho, porque os hóspedes podem precisar». Havia uma preocupação pelos outros, sobretudo por quem estava ali deslocado e sem família. O dinheiro fazia-nos muita falta, porque éramos 6 pessoas no agregado familiar, mas os hóspedes eram pessoas e estavam antes de tudo. Hoje sinto que o dinheiro se sobrepôs à importância das pessoas, tornámo-nos coisas como se o ser humano e a humanidade não fossem a base e a razão de tudo o que faz com que estejamos vivos. Meu pai, tal como meu avô paterno, foram comerciantes. Nunca fizeram fortuna e sempre se preocuparam em fazer bem as coisas e em satisfazer os clientes, porque acreditavam no que faziam e sabiam que as pessoas eram a base e a razão de ser daquilo que faziam e nunca se deixaram cegar pelo dinheiro em detrimento do ser humano.


Paulo França

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