Caríssimas e caríssimos,
Um coração sensível e
a simplicidade de vida permitem ter uma atitude mais despojada com a
própria vida e com aqueles que connosco se cruzam. O exemplo que agora
Paulo França evoca dos seus pais é um estímulo a recuperarmos modelos
solidários de viver.
“Com
o passar dos anos, percebo que o que norteava os meus pais não era
sobretudo o dinheiro. Eles tinham a capacidade de ser compassivos, de se
porem no lugar de quem vinha de longe, da solidão que sentia e do
acolhimento humano que necessitava”. Estas palavras fazem eco do
ambiente humanizador que Paulo França aprendeu na infância... É assim
que o nosso coração se vai construindo.
Fraternalmente,
grão de mostarda
NOTA: a conta de email do grão de mostarda
foi bloqueada, devido a tentativa de intrusão. E por não ter sido
possível recuperá-la, esta situação além de fazer perder todos os
endereços electrónicos, obrigou-nos também a criar um novo endereço de email, que passa a ser o seguinte: graodemostarda@sapo.pt
Agradecemos
nos enviem os vossos endereços de email, para continuarmos a poder
contactar-vos. Solicitamos ainda que passem esta informação a amigas e
amigos que, não tendo conta no Facebook, vocês saibam que recebiam as
nossas mensagens diárias e semanais. A nossa gratidão.
Nunca vivi uma época como a que estamos a viver atualmente
Lembro-me
de na minha infância (ali por volta dos anos 70 até ao 25 de abril de
74) de a minha mãe nos exortar a comer mais pão nas refeições para
encher o estômago e assim enganá-lo devido ao “conduto” (expressão
popular que significava alimento posto no prato) não ser muito. Nesse
tempo, não havia jantar, comiam-se os restos do almoço, se os havia ou
comia-se sopa e pão com queijo. E isto era mesmo assim, só aos fins de
semana e feriados. A exceção era feita no Natal ou no Fim de Ano. Este
modus vivendi estendeu-se até aos anos 90, não tendo a “revolução de
abril” trazido alguma mudança nesse sentido. Nunca nos queixámos disso.
Sabíamos que havia casas (da nossa família) que tinham o hábito de fazer
jantar sempre. Também sabíamos que quem podia fazer isso tinha mais
dinheiro e por isso podia gastar mais.
As
mudanças que foram sendo feitas no fim do regime fascista e no
pós-revolução não tiveram grande impacto na minha família. Refiro-me aos
aumentos salariais, feitos gradualmente nos anos subsequentes à
revolução, bem como a atribuição dos subsídios de férias e de Natal.
Recordo-me
do fascínio e da alegria dos meus irmãos mais velhos, que viram os seus
salários serem aumentados exponencialmente ao longo do tempo. Graças a
estes meus irmãos, pudemos ter os manuais da escola, porque o meu pai
não os podia comprar. Evidentemente, isso permitiu um maior poder
aquisitivo, mas só me lembro de ter havido algum exagero nas prendas de
Natal por volta da década de 90, altura em que se instalou um instinto
bélico de troca de prendas a ver quem podia gastar mais, como se a
bondade ou a partilha fossem isso.
Recordo-me
que nunca tive o privilégio de ter um quarto de dormir só para mim.
Partilhei sempre quarto e cama com outros irmãos. A certa altura, por
volta da década de 80, os meus pais decidiram passar a alugar dois ou
três quartos a hóspedes. Isto deveu-se às dificuldades em pagar as
contas. Tanto quanto me lembro, era um preço justo e inferior ao preço
de mercado, tendo em conta ainda o facto de ser sempre servido aos
hóspedes pequeno almoço completo, banho à discrição e acesso à sala para
ver televisão. Não havia, portanto, serventia. A roupa de cama era toda
fornecida pelos meus pais, bem como as toalhas de rosto e banho, a
limpeza dos quartos era sempre garantida por nós também.
Uma
ocasião, tivemos uma jovem oficial de justiça que ficou colocada na
comarca de Ponta Delgada. Esta jovem sentia-se deslocada, só e com
grande dificuldade de adaptação a um meio estranho, pequeno e isolado. A
Maria, seu nome, aproximava-se da cozinha aos finais de semana, e ao
jantar. Percebemos que para além de estranhar a distância da sua
família, andava também perdida e sem saber bem onde fazer as refeições.
Adotamo-la para a mesa, todos os dias, nos passeios em família.
Partilhámos com ela a nossa vida quotidiana. Minha mãe não teve coragem
de lhe cobrar as refeições, por saber que não era mais uma “boca” que
nos levaria à desgraça.
Fomos
recebendo outros hóspedes e a quem nós tratámos da mesma maneira. Todos
ficaram amigos, enviando postais e mesmo alguns telefonando regularmente
das diversas regiões de Portugal continental, das outras ilhas do
arquipélago, da Alemanha, França (os turistas que acorriam aos Açores
eram sobretudo desses países nas décadas de 80/90). Viveu-se uma
verdadeira partilha multicultural e humana. Muitos deles regressaram e
os que não o fizeram mantiveram-se em contato regular sobretudo nas
datas mais simbólicas. Hoje, perdemos o rasto dessa gente. Com o
desaparecimento dos meus pais, deixámos de viver nessa casa e eram eles
quem articulava normalmente com aquela gente. Felizmente, hoje restam
ainda muitas fotos de festas de família em que essa gente lá está
perfeitamente integrada nas nossas rotinas.
Quando
saí de casa e precisei de viver em quartos alugados (na década de 90),
percebi a diferença que havia nos preços e no trato dos senhorios em
relação aos hóspedes. Percebi que o mais importante para essa gente, que
me alugou quartos, era o dinheiro e sobretudo o dinheiro. Experimentei
situações em que eu próprio tive de comprar roupa de cama e de pagar
mais, se precisasse de lavar a roupa. Fornecimento de toalhas de banho
ou de pequeno almoço nunca conheci nos quartos que aluguei em Lisboa e
na grande Lisboa. Passei por lugares em que raramente era feita a
limpeza dos quartos. Fiquei mesmo chocado com a prática desumana que os
senhorios tinham na maneira como recebiam os hóspedes. Só conheci um
caso de um senhorio que passava recibo pelo arrendamento de quarto, mas
também esse não fornecia a roupa de cama, nem as toalhas de banho, muito
menos o pequeno almoço. Esta renda dizia respeito a um quarto que era o
resultado da subdivisão em contraplacado do que fora um só quarto
originalmente. Imagine-se o que se pratica em relação ao aluguer de
quartos a estudantes e sobretudo a imigrantes por este país fora.
Hoje,
com o passar dos anos, percebo que o que norteava os meus pais não era
sobretudo o dinheiro. Eles tinham a capacidade de ser compassivos, de se
porem no lugar de quem vinha de longe, da solidão que sentia e do
acolhimento humano que necessitava. Lembro-me de, muitas vezes, minha
mãe me dizer «olhem, não demorem muito na casa de banho, porque os
hóspedes podem precisar». Havia uma preocupação pelos outros, sobretudo
por quem estava ali deslocado e sem família. O dinheiro fazia-nos muita
falta, porque éramos 6 pessoas no agregado familiar, mas os hóspedes
eram pessoas e estavam antes de tudo. Hoje sinto que o dinheiro se
sobrepôs à importância das pessoas, tornámo-nos coisas como se o ser
humano e a humanidade não fossem a base e a razão de tudo o que faz com
que estejamos vivos. Meu pai, tal como meu avô paterno, foram
comerciantes. Nunca fizeram fortuna e sempre se preocuparam em fazer bem
as coisas e em satisfazer os clientes, porque acreditavam no que faziam
e sabiam que as pessoas eram a base e a razão de ser daquilo que faziam
e nunca se deixaram cegar pelo dinheiro em detrimento do ser humano.
Paulo França
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