Caríssimas e caríssimos,
Escutadas as palavras interpeladoras do bispo católico Januário Torgal Ferreira, a propósito de um discurso do primeiro-ministro Passos Coelho, elogiando o “sacrifício extraordinário” dos portugueses, Paulo França deixa-nos uma reflexão que percorre o sentido sociológico da atual situação – do (des)respeito pela dignidade humana à (des)responsabilização pública (ver ANEXO).
Fraternalmente,
grão
de mostarda
A propósito de um discurso...
A propósito do recente discurso do 1º ministro
de Portugal, o bispo Januário Torgal proferiu declarações a um órgão de
comunicação social em que fazia um paralelismo entre as declarações do atual 1º
ministro e o discurso do presidente do conselho de há 50 anos atrás.
O 1º ministro português
elogiava o "sacrifício
extraordinário que todos os portugueses têm demonstrado"[1] no contexto da última avaliação da
Troika à evolução da situação económica do nosso país. O bispo Januário
afirmava que “um senhor, que pelos
vistos ocupa as funções de primeiro-ministro, dizendo um obrigado à profunda
resignação de um povo tão dócil e tão bem amestrado que até merecia estar no
Jardim Zoológico”. Conclusão: “Parecia que estava a ouvir um discurso de uma
certa pessoa há 50 anos”, lamentou o bispo, acrescentando estar “profundamente
chocado” e exortando à mobilização popular, dizendo: “Vamos todos hoje para a
rua. Não vamos fazer tumultos, vamos fazer democracia.”[2].
Salvo o exagero e a metáfora de sermos tão domesticados, ao
ponto de podermos ser promovidos a dignos habitantes do parque zoológico de
Sete Rios, a verdade é que o discurso do atual 1º ministro português não se
afasta assim tanto daquilo que o presidente do conselho dizia sobre o povo
português, relevando a nossa “doçura de sentimentos, aquela
modéstia, aquele espírito de humanidade, tão raro hoje no mundo; aquela parte
de espiritualidade que, mau grado tudo que a combate inspira ainda a vida
portuguesa; o ânimo sofredor; a valentia sem alardes; a facilidade de adaptação
e ao mesmo tempo a capacidade de imprimir no meio exterior os traços do modo de
ser próprio; o apreço dos valores morais; a fé no direito, na justiça, na
igualdade dos homens e dos povos; tudo isso, que não é material nem lucrativo,
constitui traços do carácter nacional. Se por outro lado contemplamos a
História maravilhosa deste pequeno povo, quase tão pobre hoje como antes de
descobrir o mundo; as pegadas que deixou pela terra” [3].
Vivemos claramente num período histórico bem diferente daquilo que
era a Europa, o mundo e Portugal há 50 anos atrás. Todavia, há traços que se
mantêm: a nossa modéstia, o nosso ânimo sofredor, a nossa facilidade em nos
adaptarmos ao meio exterior e, por último, a pobreza.
Não nos é difícil perceber que o atual 1º ministro de Portugal se
inscreve numa ideologia política conservadora e liberal cujas origens podem ser
encontradas também naquilo que foi o Estado Novo. Mas há uma grande diferença
entre estes dois líderes: falta ao atual 1º ministro a hipocrisia e o respeito
que o presidente do conselho tinha aparentemente pelo povo português nos
discursos que fazia.
O atual 1º ministro revela-se mais cínico, menos eloquente e mais
pobre na sintaxe e na ordenação das ideias e do vocabulário, revela-se infeliz
no que diz quando se refere ao nosso povo e não esconde subestimar os
portugueses por saber que somos masoquistas, porque temos espírito de
sacrifício e ainda continuamos doces, modestos, adaptáveis ao exterior e
pobres. Se o presidente do conselho pensava isto do povo português, tinha a
inteligência de não o dizer nos discursos públicos. Ao invés, o atual 1º ministro
não é capaz de disfarçar e até incentiva-nos ao desenvolvimento da nossa
capacidade de adaptação ao exterior, fazendo a apologia pública da emigração, a
mesma emigração que Eduardo Lourenço afirmava, nos anos 70, no Labirinto da Saudade, como um fenómeno
vergonhoso para um país. E, realmente, um 1º ministro que realmente tivesse
consciência de servir o bem comum, dever-se-ia sentir envergonhado e desonrado
por estarmos a ter índices emigratórios outra vez tão altos. Quanto à fé na
Justiça, no Direito e na Igualdade entre os Homens que o presidente do conselho
afirmava, essa confiança desmoronou-se. Não acreditamos na eficácia e na
verdade da Justiça e do Direito, não acreditamos na Igualdade tendo em conta as
injustiças e desigualdades que estamos a assistir em crescendo no nosso país.
Não confiamos mais em quem nos governa porque nos mentem, porque não nos
apresentam uma fatura transparente e objetiva que justifique aquilo que estamos
a pagar, porque não têm respeito por nós e pelo nosso dinheiro. Não confiamos
no Parlamento e no aparelho de Estado porque desconfiamos que aquela gente toda
continua a receber os seus subsídios de Natal e de férias, porque isto de
sacrifícios é para o povo português, porque somos sofredores e temos espírito
de sacrifício, porque temos a doçura e a brandura que nos habilita à resignação
e nos tolhe ante a revolta e nos reforça na capacidade de emigrar e de nos
adaptar ao exterior.
Mas, não estamos tão
diferentes de há 50 ou até mais de 100 anos atrás. Já dizia Eça que “Portugal
tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram nem
homens de valor e caráter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos,
dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: e homens não os há, ou os
raros que há são postos na sombra pela política.”[4]
Continuamos a ver os raros na sombra da política.
Esta crise que vivemos não se confina a uma crise económica,
social ou financeira, a golpes palacianos de banqueiros e políticos com
conivência da justiça corrupta, mas é mais profunda, porque é a Humanidade que
está em crise, a solidariedade, a capacidade de partilharmos a vida com os
outros, a igualdade de direitos, a justiça social, o emprego. Fomos enganados,
iludidos na democracia que nos integrou na UE. Tiraram-nos o trabalho e a
produtividade, desmantelaram-nos o setor produtivo, esmagaram-nos a
agricultura, espezinharam-nos a educação, reforçaram-nos no medo de existir de
que nos fala o filósofo José Gil. Mas percebe-se cada vez mais que a solução
tem de passar muito pela solidariedade, não só da sociedade civil, porque somos
nós quem sustenta o país em termos de impostos, somos nós que pagamos a saúde,
a educação, os transportes e somos nós quem sente a perda de qualidade de vida
nesses setores fundamentais e o seu encarecimento exponencial.
Há mais de um ano atrás, Boaventura Sousa Santos[5]
vaticinava que, após a intervenção do FMI em Portugal, “os portugueses seriam
induzidos a ver como uma necessidade e não como um certificado de óbito às suas
aspirações de progresso e de dignidade” aquela intervenção. Para além disto que
se veio a confirmar volvido mais de um ano, o mesmo sociólogo invocava a
realização de uma auditoria da dívida externa para podermos ter uma ideia clara
do que realmente se passa em termos de proporção. Também apontava outra solução
para as “necessidades financeiras de curto prazo”, em vez de recorrer ao FMI,
fazê-lo no espaço lusófono da CPLP (Brasil e Angola) e a China como credores
por terem manifestado a confiança na recuperação de Portugal. O mesmo sociólogo
apontava a ideia de criar um mercado transcontinental a partir da CPLP num
triângulo liderado pelo Brasil, Angola e Portugal. Investir na nossa
especialização industrial já muito avançada e na formação avançada e
investigação científica. Tudo isto tendo em conta a ideia de que o projeto
europeu está a demonstrar o seu claro falhanço. Se o nosso povo continua
modesto e sofredor, o nosso país tem sido tratado da mesma maneira pelo eixo
franco-alemão e com a subserviência dos nossos governos e da nossa fraca
diplomacia internacional que partem de um princípio de que estamos a mais, de
que somos dispensáveis e sempre devedores e de que somos filhos de um deus
menor e pouco respeitáveis.
Para terminar, diga-se o que se disser, a maior diferença entre
o presidente do conselho e o 1º ministro atual é sobretudo uma diferença de
fundo, de sistema e de regime, o último “governa” na democracia e está
legitimado pelos eleitores de forma livre e sem eleições viciadas como há 50
anos atrás. O mesmo povo que o legitimou também pode mudar de ideias e ter
razões bastantes para dizer “basta” e derrubar as grades do zoo lusitano à beira mar plantado. Tudo
isto pode passar pela solidariedade e coesão populares cá dentro e numa
solidariedade internacional do tal triângulo político, económico e social entre
Portugal, Angola e Brasil. Para esta solidariedade internacional precisaremos
de outros homens que saiam da sombra e sejam capazes de servir o bem comum e
saibam dialogar, negociar com os seus parceiros.
Paulo França
Foto: ©Katarina 2353
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