Caríssimos e
caríssimas,
Luísa Alvim* e Valentim
Gonçalves ** reflectiram connosco, durante um ano, até Junho passado, questões
essenciais da vida, através das cartas “De que mundo somos?” que foram
escrevendo um ao outro.
Relidas as suas cartas, reconhecemos-lhes
um traço comum: a urgência da esperança. De uma esperança actuante, de busca de
sentido… “Um novo céu e uma nova terra”.
Assim, propusemos-lhes novas
cartas, com novo mote – ESPERANÇA: caminho e horizonte – e que hoje
iniciamos com a “reflexão de arranque” que ambos solicitaram que fizéssemos. E
é de Etty Hillesum, a filha de casal judeu morta em Auschwitz, que recolhemos a inspiração, a
partir de uma questão, que já em plena deportação dos judeus, ela se coloca:
“Gostava muito de viver como os lírios do campo…” (ver ANEXO).
Com estima fraterna,
grão
de mostarda
Caríssima Luísa e caríssimo Valentim,
Etty Hillesum, no seu diário redigido durante
a inominável crueldade nazi, escreveu: “Gostava muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem
esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo”
(1).
Etty estava absolutamente consciente
da situação de precariedade, não apenas material, mas sobretudo humana que
então se vivia. E apesar do que presenciava no campo de concentração de
Westerbork (Holanda) – um “foco de sofrimento humano” –, o
que a impelia era nunca perder o sentido de “como na realidade a vida é bela,
digna de ser vivida e justa, sim, justa”. Daí a urgência em desejar “viver como
os lírios do campo” e a ânsia de que os outros compreendessem “esta época”,
para que também fossem capazes de assim viver…
Em Westerbork, Etty empreendera um
despojamento absoluto – “ (…) foi lá, entre as barracas, repletas de gente
agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta vida”.
Ali, antes de ser deportada para Auschwitz, iniciou uma peregrinação pelo
essencial, que a levaria a deixar nos apontamentos daquele dia 22 de Setembro
de 1942 palavras de esperança, ao evocar aquela passagem evangélica de Mateus
(2).
O
reinado de Deus: horizonte e caminho…
A escassez de atitudes humanizadoras,
como a que se instalou no nosso tempo em diferentes instâncias políticas,
financeiras e sociais, parecem constituir sempre um obstáculo a decisões de
esperança. Sobretudo pelos diversos medos que suscitam, condicionando a própria
liberdade humana… O monge beneditino Anselm Grün, porém, recorda-nos: “Mesmo
que a liberdade esteja limitada… a nossa missão consiste em decidirmo-nos pelo
bem” (3).
As decisões de esperança somente
surgirão a partir da bondade humana. Não é uma ingenuidade. E Etty compreendeu
e experimentou isto no seu interior, num momento da história humana que exigiu,
a ela e a milhões de pessoas, um desprendimento total. E assim se encaminhou
para o essencial…
O que agora nos é dado experimentar,
neste nosso tempo, revela-se também um irresistível convite a percorrer
caminhos nos quais se recupere o essencial do ser humano.
Caminhos interiores, que levam a aprofundarmo-nos.
Não apenas na nossa fragilidade, nas nossas amarras e opacidades, mas também
nas nossas possibilidades aquilo que, em cada ser humano, é mais fulgurante,
mais genuíno: a simplicidade e a generosidade, que nos tornarão capazes de
“viver como os lírios do campo”. Este desígnio permite-nos avaliar os
caminhos, pessoais e colectivos, reveladores da urgência de atitudes
transformadoras deste nosso tempo numa “época de esperança”…
Recuperando a passagem de Mateus (4).
Que diz Jesus? Começa por afirmar: “Ninguém pode estar ao serviço de dois
senhores, pois ou odeia um e ama o outro, ou agradará a um e desprezará o
outro”. E logo faz um conjunto de recomendações – “não andeis angustiados pela
comida e bebida para conservar a vida ou pela roupa para cobrir o corpo” – que,
à primeira vista, poderão parecer desresponsabilizadoras.
No discurso de Jesus, porém, o
essencial é a felicidade humana, a fraternidade universal. O seu horizonte é
aquilo que na linguagem evangélica se designa por Reino de Deus.
Mas “não se trata de uma felicidade
barata e rápida, em que andamos à nossa volta e ignoramos todos os aspectos
negativos do mundo…”, anota Anselm Grün (3). Jesus, de facto, adverte-nos que
não podemos servir a “dois senhores”. Não ensina a despreocupação, com a nossa
vida pessoal e a vivência em sociedade. O apelo que faz é o de uma conduta
ética que nos convoca à mudança do objecto das nossas preocupações, e assim
inscrita na conclusão do seu discurso: “Buscai antes de tudo o reinado de Deus
e a sua justiça…”. Aqui reside a chave de interpretação da proposta de Jesus:
só na mudança de paradigma, na mudança de objectivos, pessoais e colectivos,
poderemos “viver como os lírios do campo”. Somente quando se desce ao
essencial, àquilo que torna a vida um acto de generosidade é que poderemos
viver “despreocupados” como as aves do céu e os lírios dos campos… porque só a
simplicidade permite a generosidade.
De contrário viveremos, sempre,
(pre)ocupados, senão mesmo obcecados, com a manutenção do sistema – “Que
havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir?” – e não com “o
reinado de Deus e a sua justiça”, enquanto horizonte e caminho de esperança...
Com estima fraterna,
grão de mostarda
(1) Etty Hillesum, “Diário – 1941-1943”, Assírio &
Alvim, Lisboa (Portugal), 2008. Etty (diminutivo de Esther) Hillesum, filha de
um casal judeu de Amesterdão (Holanda), morre no campo de extermínio nazi em
Auschwitz, a 30 de Novembro de 1943. O seu “Diário”, além de permitir descobrir
o seu empenhamento humano e social, percorre o seu itinerário espiritual nos
tempos conturbados da ocupação hitleriana
(2) “Observai como crescem os lírios
selvagens, sem trabalhar nem fiar (…).” (Mateus 6, 27)
(3) “O livro das respostas”, Paulinas
(Junho, 2008)
(4) Mateus 6, 24-34: “Ninguém pode
estar ao serviço de dois senhores, pois ou odeia um e ama o outro, ou agradará
a um e desprezará o outro. Não podeis estar ao serviço de Deus e do Dinheiro.
Por isso vos recomendo que não andeis angustiados pela comida e bebida para
conservar a vida ou pela roupa para cobrir o corpo. Não vale mais a vida do que
o sustento, o corpo mais do que a roupa? Observai as aves do céu: não semeiam,
nem colhem, nem amontoam nos celeiros. E no entanto o vosso Pai dá-lhes comer.
Não valem vocês muito mais do que as aves? Qual de vocês, por mais que se
preocupe, poderá prolongar um pouco o tempo da sua vida? E por que hão-de vocês
andar preocupados com a roupa? Reparem como crescem os lírios selvagens sem
trabalhar nem fiar. Contudo, digo-vos, que nem Salomão, com toda a sua riqueza,
se vestiu como eles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é queimada, quanto mais a vos há-de vestir a vós. Portanto, não andem
preocupados, dizendo: Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos
de vestir? (…). Procurem primeiro o Reino de Deus e a sua justiça. Não vos
preocupeis com o amanhã, pois o amanhã se ocupará consigo mesmo. A cada dia
basta o seu problema.”
*Luísa Alvim, cristã empenhada na paróquia
católica de S. Victor, em Braga – os seus “diários” da catequese no Facebook
constituem verdadeiras parábolas sobre o Amor Infinito –, é também membro do
Metanoia – movimento de profissionais católicos. Técnica superior (área de
Biblioteca e Documentação), na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão –
actualmente a trabalhar na Casa de Camilo - Museu e Centro e Estudos –, diz-se
uma “sonhadora do impossível”.
**Valentim Gonçalves é
pároco da comunidade católica de S. Pedro do Prior Velho, desde a sua
constituição como paróquia, em Outubro de 1999. A população do Prior Velho
(concelho de Loures) conhece este missionário do Verbo Divino, desde há duas
décadas, quando começou a empenhar-se no serviço aos moradores da Quinta da Serra
– bairro ilegal, constituído maioritariamente por imigrantes africanos.
Provincial da sua congregação e membro da Comissão de Justiça e Paz dos
Institutos Religiosos, assume também trabalho pastoral na antiga Quinta do
Mocho (actual Terraços da Ponte, em Sacavém), igualmente habitado por uma
população de imigrantes africanos.
Foto: Gilberto Dutra
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