terça-feira, 25 de dezembro de 2012

ESPERANÇA: CAMINHO E HORIZONTE



Caríssimas e caríssimos, 


iniciou-se um novo ciclo de cartas entre Luísa Alvim e Valentim Gonçalves, e que se publicarão cada 15 dias.


Na “carta de arranque”, no passado dia 15, lançámos o olhar sobre o que nos é dado experimentar, neste nosso tempo, tendo como ponto de prévio de reflexão palavras de Etty Hillesum no seu diário: “Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo”.


Nesta primeira reflexão de “Esperança: caminho e horizonte”, Valentim Gonçalves, que recentemente visitou Auschwitz e Birkenau, pergunta-se pelo “sentido da esperança”, quando o perigo do momento presente parece ser precisamente o de nos deixarmos “afogar pelas ondas do sem-sentido”. E duas experiências conduzem a reflexão – uma durante a viagem, em Colónia (Alemanha), e outra na comunidade de imigrantes nos terraços da Ponte (Sacavém) –, para sublinhar que viver a esperança “é mesmo remar contra a corrente” ( ver ANEXO).



Com estima fraterna,

grão de mostarda


Remar contra a corrente




Estimada Luisa,



Aqui estamos de novo a responder ao desafio que os amigos do grão de mostarda nos colocam (*), partilhando as nossas reflexões nascidas da experiência de viver no mundo, mas sem se deixar afogar pelas ondas do sem-sentido que o mundo por vezes nos oferece. Nada é absoluto. As nossas experiências não são a última palavra a dar sentido à vida; só Aquele que é a Palavra/Diálogo/Revelação o pode fazer.


Em momentos de crise é bom e reconfortante olhar para quem, como Etty Hillesum (1), atravessou caminhos mais tenebrosos sem perder a esperança de encontrar uma luz ao fundo do túnel. Sinto-me especialmente próximo dessa experiência pela “memória” que há dois meses vivi ao visitar Auschwitz e Birkenau, uma daquelas visitas que, apesar de “turísticas”, conseguem tirar as palavras aos visitantes, lançando-os num mundo de interpelações, de espanto, de indignação, na confusão humilde de quem constata as limitações da pessoa humana, mas também a força interior que a pode lançar para fora da confusão como a flor que surge no meio do pântano. Uma experiência que nos ajuda a dar a cada coisa o seu valor e a sua dimensão; que nos ajuda a manter as devidas cautelas para não confundir a árvore com a floresta. 


Curiosamente, no dia seguinte a essa visita, no caminho de Varsóvia para Bona, resolvi parar umas horas em Colónia para visitar o centro da cidade. Para o efeito depositei o meu saco de viagem na estação ferroviária, utilizando aquele sistema sofisticado onde, com alguns cliques, a bagagem é conduzida para qualquer parte e dai, pelo mesmo sistema, regressa ao depositante. Umas horas depois lá regressei, mas da bagagem nem sinal. Interpelando os responsáveis, só me disseram que tinha que esperar: esperei três dias. Só tinha comigo a roupa que vestia, o porta-moedas com uns trocos e a máquina fotográfica; no saco estava a roupa, o bilhete do avião, vários documentos, algum dinheiro. E da parte deles só uma resposta: esperar; nem uma palavra que manifestasse alguma empatia ou preocupação relativamente a comer, dormir… o mais fundamental, além de todo um programa desfeito. Mas, ainda sob o efeito do que “visitara” no dia anterior, ia dizendo para mim mesmo que, apesar de algumas semelhanças – estar de pé horas seguidas, pois não havia bancos e a olhar para o vazio - não se poderia fazer qualquer equiparação. Enfim, uma aventura que me fez ir digerindo a visita ao campo de concentração, ou mais corretamente, de extermínio, onde “a ausência de atitudes humanizadoras” como é referido na carta inicial (*), possibilitou toda aquela obscenidade e tragédia. 


As dificuldades do momento parecem incompatibilizar o sentido da esperança. Mas é aqui e agora que falar disso tem sentido. E quando a sociedade bate no fundo é então que mais necessário se torna encontrar a luz que mostra a saída. E, quando olhamos para certas figuras conseguimos discernir o mais luminoso da humanidade, como no que se refere a Etty, Anne Franke, Edith Stein, Maximiliano Kolbe, Irena Sendler (esta uma heroína sobre quem acabara de ler, antes de partir para a Polónia, o livro “A História de Irena Sendler – a Mãe das Crianças do Holocausto”, e que durante a ocupação nazi organizou a saída de cerca de 2.500 crianças do Gueto de Varsóvia, salvando-as assim e aos seus descendentes do Holocausto).

A liturgia do Advento apresenta-nos as exortações dos profetas dirigidas a um povo que ainda não tinha desistido de sonhar em ser livre e em viver na sua terra. Num destes domingos, no dia 12 passado, o profeta Baruc dizia: “Levanta-te, Jerusalém; despe as vestes de luto, porque o Senhor chegará com a sua salvação” (2). 


O Reino de Deus está aí perante cada momento, ainda que incompreensível, como um apelo a “percorrer caminhos nos quais se recupere o essencial do ser humano”. Ainda há dias mais convencido disto fiquei ao ver a comunidade de Terraços da Ponte a celebrar a festa da Imaculada juntando-se para um almoço partilhado depois da Eucaristia; apesar da carestia, eles foram capazes de se juntar e viver o melhor que a vida tem: a fraternidade e a alegria na partilha. Por isso me dizia alguém: “Nós os africanos temos isto: quando há para um, também há para os outros”; e assim continuaram a cantar e a dançar, como só eles sabem fazer. Bem disse Jesus: “Não andeis angustiados pela comida e pela bebida”; é que demasiada preocupação cria angústia e esta não nos deixa ver o que de bom e de belo ainda temos à nossa frente; paradoxalmente não deixa ver onde realmente investir para ultrapassar a crise, nem para encontrar os lenitivos indispensáveis para chegar ao fim de cabeça levantada. Por isso o profeta repetia: “Levanta-te, Jerusalém, sobe ao alto e olha para o oriente”. A esperança é mesmo remar contra a corrente, com a convicção de que se vencerá.


Para ti e para todos um Natal de esperança!



Valentim


(*) carta do grão de mostarda, publicada no passado dia 15.


(1) Etty Hillesum, filha de um casal judeu de Amesterdão (Holanda), morre no campo de extermínio nazi em Auschwitz, a 30 de Novembro de 1943. O seu diário (“Diário – 1941-1943”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008), além de permitir descobrir o seu empenhamento humano e social, percorre o seu itinerário espiritual nos tempos conturbados da ocupação hitleriana. 


(2) ver Baruc 5, 1-9

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