Caríssimas e
caríssimos,
iniciou-se um novo ciclo de cartas entre
Luísa Alvim e Valentim Gonçalves, e que se publicarão cada 15 dias.
Na “carta de arranque”, no passado dia 15,
lançámos o olhar sobre o que nos é dado experimentar, neste nosso tempo, tendo como ponto de prévio de
reflexão palavras de Etty Hillesum no seu diário: “Se as pessoas entendessem
esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do
campo”.
Nesta primeira reflexão de “Esperança: caminho e
horizonte”, Valentim Gonçalves, que recentemente visitou Auschwitz e
Birkenau, pergunta-se pelo “sentido da esperança”, quando o perigo do momento
presente parece ser precisamente o de nos deixarmos “afogar pelas ondas do
sem-sentido”. E duas experiências conduzem a reflexão – uma durante a viagem,
em Colónia (Alemanha), e outra na comunidade de imigrantes nos terraços da
Ponte (Sacavém) –, para sublinhar que viver a esperança “é mesmo remar contra a
corrente” ( ver ANEXO).
Com estima fraterna,
grão de mostarda
Remar contra a corrente
Estimada Luisa,
Aqui estamos de novo a responder ao desafio
que os amigos do grão de mostarda nos colocam (*), partilhando as nossas
reflexões nascidas da experiência de viver no mundo, mas sem se deixar afogar
pelas ondas do sem-sentido que o mundo por vezes nos oferece. Nada é absoluto.
As nossas experiências não são a última palavra a dar sentido à vida; só Aquele
que é a Palavra/Diálogo/Revelação o pode fazer.
Em momentos de crise é bom e reconfortante
olhar para quem, como Etty Hillesum (1), atravessou caminhos mais tenebrosos
sem perder a esperança de encontrar uma luz ao fundo do túnel. Sinto-me
especialmente próximo dessa experiência pela “memória” que há dois meses vivi
ao visitar Auschwitz e Birkenau, uma daquelas visitas que, apesar de
“turísticas”, conseguem tirar as palavras aos visitantes, lançando-os num mundo
de interpelações, de espanto, de indignação, na confusão humilde de quem
constata as limitações da pessoa humana, mas também a força interior que a pode
lançar para fora da confusão como a flor que surge no meio do pântano. Uma
experiência que nos ajuda a dar a cada coisa o seu valor e a sua dimensão; que
nos ajuda a manter as devidas cautelas para não confundir a árvore com a
floresta.
Curiosamente, no dia seguinte a essa visita,
no caminho de Varsóvia para Bona, resolvi parar umas horas em Colónia para
visitar o centro da cidade. Para o efeito depositei o meu saco de viagem na
estação ferroviária, utilizando aquele sistema sofisticado onde, com alguns
cliques, a bagagem é conduzida para qualquer parte e dai, pelo mesmo sistema,
regressa ao depositante. Umas horas depois lá regressei, mas da bagagem nem
sinal. Interpelando os responsáveis, só me disseram que tinha que esperar:
esperei três dias. Só tinha comigo a roupa que vestia, o porta-moedas com uns
trocos e a máquina fotográfica; no saco estava a roupa, o bilhete do avião,
vários documentos, algum dinheiro. E da parte deles só uma resposta: esperar;
nem uma palavra que manifestasse alguma empatia ou preocupação relativamente a
comer, dormir… o mais fundamental, além de todo um programa desfeito. Mas,
ainda sob o efeito do que “visitara” no dia anterior, ia dizendo para mim mesmo
que, apesar de algumas semelhanças – estar de pé horas seguidas, pois não havia
bancos e a olhar para o vazio - não se poderia fazer qualquer equiparação.
Enfim, uma aventura que me fez ir digerindo a visita ao campo de concentração,
ou mais corretamente, de extermínio, onde “a ausência de atitudes
humanizadoras” como é referido na carta inicial (*), possibilitou toda aquela
obscenidade e tragédia.
As dificuldades do momento parecem
incompatibilizar o sentido da esperança. Mas é aqui e agora que falar disso tem
sentido. E quando a sociedade bate no fundo é então que mais necessário se
torna encontrar a luz que mostra a saída. E, quando olhamos para certas figuras
conseguimos discernir o mais luminoso da humanidade, como no que se refere a
Etty, Anne Franke, Edith Stein, Maximiliano Kolbe, Irena Sendler (esta uma
heroína sobre quem acabara de ler, antes de partir para a Polónia, o livro “A
História de Irena Sendler – a Mãe das Crianças do Holocausto”, e que durante a
ocupação nazi organizou a saída de cerca de 2.500 crianças do Gueto de
Varsóvia, salvando-as assim e aos seus descendentes do Holocausto).
A liturgia do Advento apresenta-nos as
exortações dos profetas dirigidas a um povo que ainda não tinha desistido de
sonhar em ser livre e em viver na sua terra. Num destes domingos, no dia 12
passado, o profeta Baruc dizia: “Levanta-te, Jerusalém; despe as vestes de
luto, porque o Senhor chegará com a sua salvação” (2).
O Reino de Deus está aí perante cada momento,
ainda que incompreensível, como um apelo a “percorrer caminhos nos quais se
recupere o essencial do ser humano”. Ainda há dias mais convencido disto fiquei
ao ver a comunidade de Terraços da Ponte a celebrar a festa da Imaculada
juntando-se para um almoço partilhado depois da Eucaristia; apesar da carestia,
eles foram capazes de se juntar e viver o melhor que a vida tem: a fraternidade
e a alegria na partilha. Por isso me dizia alguém: “Nós os africanos temos
isto: quando há para um, também há para os outros”; e assim continuaram a
cantar e a dançar, como só eles sabem fazer. Bem disse Jesus: “Não andeis
angustiados pela comida e pela bebida”; é que demasiada preocupação cria
angústia e esta não nos deixa ver o que de bom e de belo ainda temos à nossa
frente; paradoxalmente não deixa ver onde realmente investir para ultrapassar a
crise, nem para encontrar os lenitivos indispensáveis para chegar ao fim de
cabeça levantada. Por isso o profeta repetia: “Levanta-te, Jerusalém, sobe ao
alto e olha para o oriente”. A esperança é mesmo remar contra a corrente, com a
convicção de que se vencerá.
Para ti e para todos um Natal de esperança!
Valentim
(*) carta do grão
de mostarda, publicada no passado dia 15.
(1) Etty Hillesum, filha de
um casal judeu de Amesterdão (Holanda), morre no campo de extermínio nazi em
Auschwitz, a 30 de Novembro de 1943. O seu diário (“Diário – 1941-1943”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008), além de
permitir descobrir o seu empenhamento humano e social, percorre o seu
itinerário espiritual nos tempos conturbados da ocupação hitleriana.
(2) ver Baruc 5, 1-9
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